19º MOTELX – Dias 5 e 6 : Queens of the Dead, Every Heavy Thing, Chime, Opus, I Live Here Now, Dragonfly, Death of a Unicorn, The Last Sacrifice & The Home

EquipaSetembro 15, 2025

Termina a 19ª Edição do MOTELX – Festival Internacional de Cinema de Terror de Lisboa. Um ano diferente em que a Tribuna do Cinema se tornou parceiro de comunicação do festival, concretizando uma amizade de longos anos e mantendo, como sempre, a sua isenção no acompanhamento diário dos filmes que por lá passaram. Uma sala Manoel de Oliveira cheia no Cinema São Jorge foi palco para a sessão de encerramento onde se fizeram as despedidas e os anúncios dos vencedores dos vários prémios desta edição.

O Compositor, de Afonso Lucas e Rodrigo Motty, venceu o Prémio MOTELX – Melhor Curta de Terror Portuguesa. O Prémio Méliès d’argent – Melhor Curta Europeia consagrou Amarelo Banana, do realizador português Alexandre Sousa. Her Will Be Done, de Julia Kowalski, foi o filme distinguido com o Prémio Méliès d’argent – Melhor Longa-Metragem Europeia. Quanto ao Prémio MOTELX – Melhor Guião de Terror Português sorriu a António Xavier Rodrigues com Quem Mata no Camarido? (Seis Betos e Meia). The Legend of the Hummingbird, de Morgan Devos, foi o vencedor do Prémio Lobo Mau. E o Prémio Betclic Monster Odds MOTELX distinguiu o guião de Maurício Valentino O Clube de Tricô das Quartas. Enfim, o Prémio do Público ficou nas mãos de Dragonfly, de Paul Andrew Williams.

Deixamos para este último artigo as críticas ao 5º e 6º dia do MOTELX onde vimos vários filmes. O destaque talvez vá para Queens of the Dead, a comédia zombie queer de Tina Romero, para I Live Here Now, estreia de Julie Pacino, para The Home, filme exibido na sessão de encerramento, protagonizado por Pete Davidson. Vimos ainda Chime, de Kurosawa, talvez o melhor filme exibido nesta edição do festival, Death of a Unicorn da A24, Dragonfly (o vencedor do prémio do público), Opus e o documentário The Last Sacrifice. Hugo Dinis, David Bernardino e André Antunes assinam as críticas.

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Queens of the Dead de Tina Romero
Secção Serviço de Quarto

Há sempre duas formas de olhar para alguém que segue nas pisadas de um progenitor de renome. Por um lado, há o nepotismo facilitista que sempre serve para abrir portas. Por outro, o peso do último nome terá igualmente o condão de convidar comparações indesejáveis e até injustas. No caso de Tina Romero, filha de George A. Romero, estamos perante um pouco dos dois. Queens of the Dead é um registo tão obviamente inspirado pelo trabalho pioneiro do pai de Tina Romero que se torna quase redundante dizê-lo. Ainda assim, não é a Night of the Living Dead que a primeira longa da filha de George A. Romero mais se endivide do ponto de vista de inspiração. Queens of the Dead é uma comédia leve e suficientemente enternecedora que coloca uma pequena comunidade de drag queens e festivaleiros no centro de um vendaval de zombies lentos e relativamente pouco irritados com a sua condição. Para trás ficam as ideias de gore e de personagens cuja carne faça de munição para o canhão cinematográfico, em prol de uma condução humorística que tem tanto de absurda como de genuinamente empática. Queens of the Dead salta à vista precisamente pela forma desprendida como vê as relações na comunidade drag a estreitarem-se na face da ameaça do mundo exterior. Nesse aspecto, Queens of the Dead é muito mais Shaun of the Dead, com todos os seus maneirismos desconstrutores do género zombie, do que Night of the Living Dead. Este é também um filme que salta de imediato à vista como um registo de estreia: a câmara de Tina Romero é frequentemente inerte e incapaz de conceder algum tipo de dinâmica propulsiva aos seus momentos de acção, mas é a caneta do seu argumento que mais facilmente cede à tentação de forçar um desenlace emotivo. Queens of the Dead não quer ser muito mais do que a comédia absurdista que é durante grande parte da sua duração. Até deixar de o querer. E é aí que se quebra a ligação com o espectador.

Hugo Dinis

 

Ao ler a sinopse de Queens of the Dead, realizado pela filha de George Romero, Tina Romero, uma nepotista que deliberadamente não procura afirmar uma voz própria enquanto autora de cinema, antes colando-se à herança do pai “mestre dos mortos vivos”, antecipa-se um filme altamente divertido: uma comédia de terror maximalista com drag queens a matar zombies. Precisamente por causa do seu conceito épico, é quase criminoso que Queens of the Dead consiga ser um filme tão desinteressante, aborrecido e vazio. Jogando sempre pelo seguro, as personagens, as piadas, os clichés, apenas servem para confirmar os seus estereótipos, sem uma única ideia para apresentar. Tina Romero parece apenas interessada em alimentar o seu público-alvo, esquecendo-se de que está, convenhamos, a fazer um filme, e a desperdiçar completamente o seu próprio conceito. Onde está a carga dramática? Onde está o desenvolvimento de personagens? Onde está o filme de terror camp que foi prometido? Onde está o sangue? Onde está o clímax? Onde está a emoção? Onde está a graça? Queens of the Dead arrisca zero e parece não ter nada para dizer para além de ser um “filme muito queer”. Quando percebemos que os momentos mais cómicos vêm da única personagem masculina branca e heterossexual fora da sua zona de conforto, vemos que esta é uma das oportunidades mais espalhafatosamente desperdiçadas do cinema de nicho recente.

David Bernardino

 

Every Heavy Thing de Mickey Reece
Secção Serviço de Quarto

Talvez 2025 seja o ano do noir. Every Heavy Thing é um titubeante trabalho do realizador e argumentista Mickey Reece que segue a lógica do cinema policial para se colocar na pista de um assassino em série pelos olhos da sua presa. Desde logo, do ponto de vista de tom, Reece sente claras dificuldades em estabelecer exactamente em que plano quer colocar as incidências que retrata. Ora recaindo na poltrona do slasher indie, ora refastelando-se na cama do humor ao estilo deadpan, Every Heavy Thing vai saltando de registo de forma abrupta e, em certos momentos, de maneira deliberadamente disruptiva. A sua diagése segue, contudo, os trâmites habituais do noir: Josh Fadem trabalha num pequeno jornal local e vê-se agora no oitavo ano de ligação à namorada enfermeira, mas a sua ida a um concerto a pedido insistente de um colega de trabalho acaba por terminar com o assassinato da vocalista (Barbara Crampton). A perversidade das ocorrências é introduzida pelo contacto directo entre Fadem e o assassino (James Urbaniak), um multimilionário em busca de emoções fortes. A partir desta premissa, não só se estabelece uma relação de cumplicidade sinistra entre Fadem e Urbaniak, como ficamos com a clara sensação de que Reece se debate quase em tempo real em relação à melhor forma de fazer avançar o seu argumento. Vemos Fadem a deambular pelas ruas em estado de insónia imposta pelos pesadelos que vai tendo, mas também a investigar o caso dos assassinatos cujas respostas já detém. Há, apesar de tudo, decididamente um elemento de imprevisibilidade no seu dia-a-dia pós-concerto, em particular pela adopção de registos casuais nocturnos (até que ponto estará o revisionismo face a After Hours de Scorsese a fazer-se sentir nos cineastas de hoje?). A posição formal adoptada por Every Heavy Thing procura sempre criar uma sensação de surrealismo febril no limiar da realidade de Fadem. Ao registo visual granulado, Reece superimpõe uma edição de imagem artificial a fazer lembrar a de um videoclipe musical e uma coluna sónica que contribui para alienar ainda mais o espectador. Estes elementos conjugam em si uma pose fílmica que parece vir antes do próprio argumento de Reece. Em boa verdade, talvez o ano do noir não tenha vindo para ficar.

Hugo Dinis

 

Chime de Kiyoshi Kurosawa
Secção Serviço de Quarto

As aulas de culinária são apenas uma distração para Tashiro (Seiichi Kohinata). Uma distração do quê? À exceção de um breve trecho sobre um barulho misterioso e que nunca ouvimos, Kiyoshi Kurosawa deixa apenas nas entrelinhas. Chime, média-metragem estreada pelo cineasta japonês há um ano e que teve finalmente estreia no MOTELX 2025 (das suas duas longas do mesmo ano, Cloud, passou no Indielisboa) move-se de forma imperceptível entre a história de fantasmas e o retrato social contemporâneo (com uma pitada quase imperceptível da distopia tech à qual sempre regressa), registos comuns à sua filmografia — aqui traduzidos num excelente e despojado exercício, que não fosse o desconforto que causa e desejaríamos que tivesse o dobro da duração.

Um formalismo seguro e discreto contribui para essa sensação. Kurosawa sabe como poucos quando aguentar um plano, quanto nos manter no silêncio e quando nos libertar dele. Muitas vezes sem que nada de material mude nelas, as imagens e sons do filme invadem-nos o subconsciente, imiscuem-se debaixo da pele, ampliando e muito o efeito dos meros 45 minutos da obra. Acompanhamos Matsuoka (Mutsuo Yoshioka), um chef e professor de culinária de difícil leitura, ao longo de um filme pontuado por momentos chocantes e genuinamente inesperados, que desequilibram o espectador, reconfigurando constantemente aquilo que estamos a ver.

O que a princípio parece apresentar-se como um thriller psicológico em potência rapidamente assume uma carga sobrenatural… ou talvez não. Com efeito, os espasmos de loucura, omnipresentes na sociedade (a nossa?) que o filme nos apresenta, carecem de explicação, talvez porque esta não exista. Kurosawa parece indicar-nos que a vivência hermética das personagens, a alienação e dissociação que espelham, são transversais à experiência moderna, que os seus impulsos não nos são assim tão estrangeiros. O terror último de Chime, por isso, não é o facto de não sabermos exatamente que barulho atormenta as personagens — mas sim de que, na verdade, todos o conseguimos ouvir.

André Filipe Antunes

 

Opus de Mark Anthony Green
Secção Serviço de Quarto

Talvez as expectativas fossem (eram) baixas à partida, ou talvez seja uma “queda” pessoal para este tipo de proposta de terror de culto, misto de Get Out, de Jordan Peele e Midsommar – O Ritual, de Ari Aster, quem em anos recentes tem dado ao mundo cópias mais ou menos malogradas como Don’t Worry Darling, The Menu ou o mais recente Blink Twice. Seja qual for o caso, Opus resulta, quanto mais não seja por saber exatamente o que é e por uma sensação de experiência vivida (de forma menos extrema, esperemos) que a realização e o argumento comunicam. Da autoria de Mark Anthony Green, antigo editor da revista GQ, o retrato que o filme faz do jornalismo cultural, do mundo dos perfis hagiográficos de artistas e celebridades e da promiscuidade que muitas vezes compromete o rigor ético em nome do acesso foi registada por este jornalista com o apropriado teor de realismo, raro de ver quando se fala desta profissão no grande ecrã.

Formalmente, não se pode dizer que o filme seja um exemplo – pelo contrário, tem vários e óbvios desequilíbrios (e algumas escolhas bizarras), próprios de um realizador estreante. O elenco, ainda assim, é mais do que competente, ajudando a colmatar ou pelo menos ignorar as falhas: Ayo Edebiri continua a ser uma das “novas estrelas” mais interessantes da constelação recente, e John Malkovich sabe exatamente como dar vida plausível a uma estrela de rock senescente e psicopata. Em termos narrativos, contudo, Opus desaproveita muito do seu potencial. Parece haver a intenção de algum comentário social, ideia que o final reforça, mas o seu alvo e eficácia são demasiado ténues para surtir efeito. Talvez um filme mais longo pudesse discorrer mais sobre estas ideias… por outro, talvez seja melhor ficar-se pela modéstia de bom filme-de-programa, em vez de querer ter ambição maior que as suas capacidades e espalhar-se ao comprido. Os Ari Asters mais recentes que o digam.

André Filipe Antunes

 

I Live Here Now de Julie Pacino
Secção Serviço de Quarto

Há duas formas de encarar I Live Here Now, a primeira longa-metragem de Julie Pacino (filha de Al Pacino). Por um lado, é claramente um produto da geração millennial, citando de forma direta uma série de autores que influenciaram a realizadora, como Lynch, Argento ou Kubrick, e perseguindo de forma consciente essa identidade. Um filme metáfora simples de decifrar, mas ainda assim interessante o suficiente para intrigar o espectador intérprete. Hoje em dia, a fasquia está tão baixa que basta um filme ter um mínimo de personalidade para ser considerado interessante. I Live Here Now pelo menos tenta e executa as suas ideias de forma assertiva. Acima de tudo, é um filme atmosférico, bem filmado e bem interpretado, com planos habilmente compostos. As cores fortes, herdadas da tendência neo-noir dos últimos 10 anos, também estão presentes, e tudo funciona de maneira inesperadamente coesa. É difícil criticar negativamente um primeiro esforço tão honesto e que sabe claramente o que é.

David Bernardino

 

Está actualmente em curso uma epidemia de cineastas americanos que fazem bandeira de um nerdismo fílmico crónico em detrimento de experiência vivida. A crosta formativa do cinema independente parece estar poluída com gente que viu o Eraserhead ou o Céline et Julie Vont en Bateau e está determinada em emulá-los ou mesmo fotocopiá-los. Junta-se uma pitada dos temas quentes do momento e temos um cozinhado que já merece financiamento. Não sei se será esse o caso de Julie Pacino, filha de Al, mas a sua primeira longa dá ares de uma versão cinematográfica de um qualquer livro de Maria Francisca Gama. Empoleirado em questões fracturantes (de novo nos surge o terror gestacional como ponto de partida), I Live Here Now é concebido para aludir e chocar em vez de criar e entender. Nele, uma mulher solteira (Lucy Fry) marcada por algum tipo de operação intra-uterina na sua juventude dá por si a lidar com uma gravidez indesejada e um namorado firmemente plantado nas saias castradoras da mãe. Para fugir ao seu contexto, Fry dá entrada num hotel peculiar populado com gente pouco convencional. Na realidade, é mesmo preciso usar o eufemismo porque I Live Here Now é uma cópia imberbe do cinema introspectivo de David Lynch (certamente não será inocente a presença de Sheryl Lee num papel relativamente secundário aqui) sem que se vislumbre uma única preocupação em montar algum tipo de significado por detrás deste gesticular de intenções. Lucy Fry vê-se a braços com um trauma de tal forma performativo que é possível antecipar deixas. Os próprios simbolismos (o hotel, a gerente do mesmo, a vizinha de quarto, a mulher-a-dias) revestem-se de uma infantilidade quase amadora que mais tarde se repercute num espalhafato representativo sem grande impacto para quem até lá aguentar. Tudo isto se encavalita numa representação puramente unidimensional do trauma gestativo e do aborto em particular. Se alguém pensar em procurar cineastas para adaptar A Cicatriz ao grande ecrã, ponderem contactar a residência Pacino.

Hugo Dinis

 

Dragonfly de Paul Andrew Williams
Secção Serviço de Quarto

Qual é mesmo o propósito do realismo no cinema? O puro retrato da realidade responde sempre a uma lógica propagandista, seja a que contexto nos referirmos, mas a força de um conjunto de referências que possam servir de identificação para o espectador permite habitar o que é mostrado no ecrã. É assim que o melhor trabalho de cineastas como Mike Leigh ou Ken Loach, para dar dois exemplos frequentemente citados como comparativos a este Dragonfly, se desdobra em criação de significados muitas vezes potentes, muitas vezes políticos, muitas vezes observacionais. Paul Andrew Williams recria Leigh ou Loach da mesma forma que os Quinta do Bill recriam Bob Dylan: através de uma mimetização que acaba por não ter muito para dizer do que está a abordar. Acima de tudo, Dragonfly é um enorme desperdício de uma actriz qualificada como Andrea Riseborough, aqui utilizada como vizinha diletante de uma simpática idosa com necessidades de cuidados especiais (Brenda Blethyn). Williams descarta a observação social e a declaração política para imitar um ritual neorealista ao qual parece estar inteiramente distante do ponto de vista identitário. Riseborough e Blethyn desenvolvem uma relação de codependência que leva a primeira a ganhar uma amiga para combater a sua solidão e a segunda a dar-se ao luxo de dispensar as enfermeiras que se sucedem na sua assistência. Contudo, há uma artificialidade que emana da representação social de Williams e que parece ter origem numa visão puramente anti-humanista do realizador. Riseborough, em particular, é ilustrada como alguém nos limites do indesejável face ao que é tolerável em sociedade, e isso acaba-se por comprovar na escolha de desenvolvimento no argumento de Dragonfly. Os derradeiros dez minutos sinalizam uma inspiração em Jeanne Dielman que faz tábua rasa da complexidade dos rituais de Akerman, valorizando uma inversão inexplicável de registo e uma violência sub-humana em lugar de destaque. O que resulta de Dragonfly, vencedor do prémio do público no Motelx 2025, é uma desumanização do realismo e das suas personagens. Um engodo niilista em tempos sombrios

Hugo Dinis

 

Death of a Unicorn de Alex Scharfman
Secção Serviço de Quarto

Death of a Unicorn é mais um filme na tendência americana que se instalou na década pós-Knives Out: uma parábola eat the rich em forma de filme de género, neste caso um monster movie que pergunta “quem é o verdadeiro monstro?” (a resposta não vai surpreender ninguém). Infelizmente, não se encontra aqui aquilo que, apesar de tudo, ainda distiguiu o mistério de Rian Johnson, nenhum rasgo ou capacidade de subverter expectativas. Tudo neste filme assinado pelo estreante Alex Scharfman gira em torno de lugares comuns absolutamente batidos e rebatidos, um argumento previsível e com a densidade de uma folha de papel vegetal e caracterizações de revirar os olhos, numa história onde toda a ação resulta da estupidez das personagens (todas elas odiosas, mesmo as que não é suposto que o sejam) e em função das necessidades da sua rígida e exasperante estrutura.

Pintar em traços largos não é necessariamente problema numa sátira juvenil como esta. O problema é que Death of a Unicorn mais se assemelha a uma auto-paródia, tão mecânica e clichê é a sua abordagem. Na segunda metade lá dá uns apontamentos da sua graça quando os titulares unicórnios aparecem, trazendo consigo uma energia de slasher de série B que pelo menos diverte e confere ao filme um laivo de personalidade própria. E uma ou outra ideia, por menos subtil que seja, não é totalmente ineficaz — as representação literais de “consumo” da dádiva por parte da família rica são particularmente grotescas e preversas. Mas é pouco, muito pouco para justificar um exercício que já se viu tantas vezes. E ainda temos um novo Knives Out este ano…

André Filipe Antunes

 

É difícil de perceber quem é o público alvo de Death of a Unicorn. O primeiro filme de Alex Scharfman, que por alguma razão teve financiamento e selo da respeitada A24, parece querer estar em todo o lado ao mesmo tempo. É a centésima comédia negra “eat the rich” do último par de anos, terreno fértil no cinema americano actual. É comédia Gen Z ao explorar a dualidade entre Jenna Ortega, a filha do submisso e viúvo Paul Rudd que vende a sua alma ao grande capital em busca de uma vida melhor para a filha que não a quer. É comédia boomer ao trazer sensatez ao olhar de Paul Rudd. É comédia millennial na pele de Will Poulter, o filho do casal de magnatas Richard E. Grant e Téa Leoni. É fantasia infantil no seu final. Tem consciência de classe na personagem de Griff, o mordomo interpretado por Anthony Carrigan. Atropela-se um unicórnio com propriedades mágicas. Decisões precisam de ser feitas. Obviamente que a conclusão é a esperada: Death of a Unicorn quer ser tudo e acaba por ser pouco, mas aquilo que faz, faz de forma adequada. Uma comédia de terror, que é na verdade um monster movie com unicórnios assassinos, Jurassicparkianos, capaz de proporcionar algumas emoções e particularmente piadolas de bela execução, mérito sobretudo dos actores de primeira leva no cinema de entretenimento que conseguiu contratar. Um exemplar de um filme mediano que cumpre a sua função.

David Bernardino

 

The Last Sacrifice de Rupert Russell
Secção Doc Terror

O movimento de folk horror britânico sempre se revestiu de uma ligação próxima à identidade nacional e à desintegração gradual do império britânico. A identificação de rituais que está na base das sociedades anglo-saxónicas coloca a importância do pagão num curioso lugar de destaque. É a partir dessa base que este The Last Sacrifice de Rupert Russell procura retratar a emergência de um género extraordinariamente rico que produziu clássicos e recentrou a mitologia britânica sobre si mesmo. Para o fazer, utiliza o caso de um assassinato não resolvido para desenvolver um conjunto de teorias não apenas sobre este como sobre o seu impacto cultural. Nem sempre Russell consegue estabelecer a estrutura mais escorreita para o fazer, e há argumentos que parecem ser apenas utilizados para encaixar na narrativa (o Midsommar de Ari Aster, ainda que evidentemente inspirado em The Wicker Man, não se encontra necessariamente apoiado na mitologia britânica), mas The Last Sacrifice advoga uma semelhança entre cultura, identidade nacional, e simbologia local, para propor uma ideia de uniformidade. O assassinato de Charles Walton em 1945, encoberto em circunstâncias macabras e com requintes de malvadez, veio permitir uma panóplia de interpretações que revela mais sobre a discussão nacional no espaço público do que necessariamente sobre o seu mistério. A obsessão contemporânea pelo true crime enquanto peça de entretenimento sempre teve um fascínio identitário intimamente associado à cultura britânica nestes países, seja na sua representação em The Wicker Man ou na obsessão de Morrissey pelos “Moors Murders”. The Last Sacrifice, contudo, explora tudo, desde satanismo a bruxaria, passando por fenómenos de culto, com essa lente exploratória nacional. Com nascença nos Cotswolds, as práticas e as intenções dos povos rurais britânicos viram-se ilustradas pela sua cultura com uma lente profundamente retrógada. Os populares são sisudos, fechados e indecifráveis. E ainda que The Last Sacrifice não consiga fazer a ligação entre povo e cinema de uma forma satisfatória, pelo menos não deixa fios soltos na busca de uma Grã-Bretanha em depressão colectiva.

Hugo Dinis

 

The Home de James DeMonaco
Sessão de Encerramento

Ainda está por explicar porque é que Pete Davidson é protagonista de cinema, mas isso é o que menos importa em The Home. Um filme imperdoavelmente unidimensional, leva o espectador pela mão de forma sequencial com os seus diálogos débeis, quase como um videoclipe, sem qualquer momento de pausa ou assimilação. Davidson narra o filme ao público enquanto tenta desvendar o pequeno mistério do lar de terceira idade que serve como pano de fundo: pensa em voz alta, olha para fotografias antigas, pesquisa na internet, com um argumento preguiçoso e linear que em nada desafia o espectador. O maior pecado, no entanto, é técnico, com uma realização inexplicavelmente próxima do amadorismo, que parece retirar prazer infantil em mostrar sangue e vísceras apenas porque “é um filme de terror.” Tudo isto apenas para se tornar em mais um filme de género cujo clímax é uma personagem a matar toda a gente, deixando o seu trauma para trás das costas. The Home não é apenas mais um filme “eat the rich”, cuja mensagem aparente é velhos = maus. É um filme de terror particularmente mal executado em todos os seus aspetos.

David Bernardino