Jeanne Dielman, 23, quai du Commerce, 1080 Bruxelles (1975), de Chantal Akerman: Entre Quatro Paredes

Laura MendesMaio 30, 2025

Recuperando o mote que havia lançado – de forma bem mais explosiva e colérica – em Saute ma ville (1968), Chantal Akerman, em Jeanne Dielman, 23, quai du Commerce, 1080 Bruxelles, elabora uma lenta e amadurecida (des)codificação da anterior curta-metragem.

O imponente título não deixa esconder que este filme vive do pormenor, da atenção prestada ao detalhe. Vive, aliás, da intrusão no seio identitário (que mulher sou eu? que sentido tem o que faço?), aqui irrevogavelmente vinculado ao doméstico; questiona o significado de todo e qualquer movimento de uma mulher no decorrer de um (que são três) dia(s), através de um tão íntimo acompanhamento que, deliberadamente colocando-nos à prova, assevera que a nossa atenção tem de – não deve – estar voltada para a perfeição indiferente de Jeanne, para as suas postura, posições e (in)expressões faciais e corporais.

A casa é um espaço absolutamente condicionado pela rigidez – o compulsivo (como o são todas as tarefas por ela desempenhadas) apagar e acender das luzes é dos que mais nos faz sofrer, como um pulsar nervoso da obrigação e da subserviência a um bem-estar ideal; é sensível o frio que emana deste lugar e dos objetos que o ocupam, não só pela cinematografia que privilegia os tons gélidos, pela mise-en-scène que faz do lar um sepulcro, mas também por aquilo que Jeanne executa, nomeadamente a cena do banho, em que a sua reclusão em si própria, materializada pelo aninhar físico, bem como a utilização da torneira em vez do chuveiro, são sinais de uma réplica de vida.

Momentos imbuídos de tamanha (a)normalidade, que surgem cheios de estranheza, (anti-)naturais, são como burocracias quotidianas interpeladas apenas pelas luzes que ecoam na sala de jantar escurecida – divisão sagrada –, visões fulgurantes do lá fora, do não-isto. Numa das rotinas, a que integra a saída à rua, à noite, a cidade é um espaço absolutamente negro, impenetrável – para além do retrato da cidade diurna centralizado na sua função comercial, com a ida de Jeanne a estabelecimentos tendo por fim a realização das compras necessárias, o potencial extático da cidade noturna é rejeitado, tornando-a envolta numa penumbra cujo complemento é, sem dúvida, o vazio da casa: até a poesia de Baudelaire é transformada num mero exercício, numa banalidade rotineira.

O derradeiro trabalho de Jeanne, que se destaca – ainda que perfeitamente integrado na sua rotina – dos restantes, é o sexual: aquele que encerra em si a discussão acerca de um leque enorme de problemas relacionados com o papel da mulher e com o seu estatuto, bem como o do seu corpo, na esfera pública e privada, com ênfase na total e absoluta abdicação de todo o seu ser para uma existência que lhe é alienante. Para além de ser a via do  despoletar da libertação – tendo sido, antes disso, a via da repressão –, mantém-se em diálogo com outras exposições reflexivas que vão sendo feitas ao longo do filme, nomeadamente o automático e lacónico discurso sobre o trabalho, o casamento e o futuro – Jeanne recorda a sua juventude, a sua reticência em casar, a vontade de um trabalho e independência – e a narrativa edipiana, cuja figura por excelência é o seu filho Sylvain, metrónomo passivo e fora de tempo que admite a aversão ao sexo e a vontade de ver o pai desaparecido sempre que pensava no ato sexual dos progenitores. Uma demonstração da magnitude da estrutura patriarcal que, mesmo com a figura sua representante (o Marido, o Pai) fisicamente ausente – sabe-se, somente, que o marido de Jeanne morreu –, continua a propagar a condenação da mulher ao automatismo (comportamental, reprodutivo, existencial) imposto que, de tão entranhado, só poderá desaparecer com uma rutura drástica.

O caos vai-se criando, a partir da aparente ordem, com recurso ao inefável nada.

As primeiras subtilezas do desmoronamento são visíveis no pentear do cabelo – dos atos em que a obsessão mais se deixa transparecer, sendo o confronto com a própria (imagem) ao espelho o primeiro passo da progressiva violência, finalmente expressa, com que as tarefas vão sendo desempenhadas.

Deduzimos que o primeiro dia ao qual assistimos é uma repetição de tantos outros anteriores, dada a persistência destes reflexos de trabalho. Mas tudo se começa a desconstruir quando chega o “fim do primeiro dia”: agora, a perfeição dá lugar ao desleixo, a regra à liberdade. O cabelo está despenteado, as tampas deixam de se fechar, as luzes deixam de se apagar, as janelas mantêm-se abertas. É de uma tremendamente dolorosa e angustiante elegância a construção desta transição – Jeanne está num processo de fragmentação, pois numa recusa da formatação, e vagueia em pânico pelas divisões da casa. O esgotamento é, aliás, interessantemente explorado quando o bebé da vizinha de quem toma conta, num choro lancinante e irreprimível, é tratado com a maior das indiferenças – espectro de uma maternidade forçada? – ou quando o café com leite não consegue ser finalizado – vulto de uma constante insatisfação que advém de uma também constante pressão para o ideal?

Desconstruindo o que, muitas vezes, é considerada a liberdade feminina, faz dos “momentos mortos” de uma “dona de casa” uma desesperante vivência; a cena final, a única em que vemos Jeanne parada sem pretensão a nada, sem o ímpeto de fazer (por fazer), é a reivindicação da dignidade da sua existência.

Imagens de subtil violência que se ultrapassam a elas próprias, apontando para uma infinitude de verdades cujo silêncio é tão poderoso como uma tesoura que se espeta, repentinamente, no pescoço de um homem, deixando-o esvair-se em sangue em cima de uma cama.

Laura Mendes