Kiyoshi Kurosawa é um dos realizadores mais singulares em atividade. Habitualmente colado ao género do Terror, a verdade é que o seu estilo clínico, mistificador e minimalista foge a classificações óbvias e configura um cinema raro. O seu mais recente filme, Chime, uma média-metragem de 44 minutos estreada em competição na Berlinale, funciona tanto como súmula como depuração dos elementos que tem vindo a trabalhar nas últimas décadas. Três tribunos já tiveram a oportunidade de o ver e deixam-nos aqui as suas críticas.
Kiyoshi Kurosawa, mestre do cinema de terror japonês apresenta a sua nova abordagem ao terror psicológico. Nesta média metragem, o realizador japonês entrega-nos de forma extremamente crua, uma inquietante e desconcertante história de frustração, fracasso e vingança. Um professor de culinária com as mais altas pretensões laborais é obrigado a conviver com a mediocridade decorrente da sua actual profissão. Nesta rotina de desencanto, o realizador é extremista na inserção da crueldade, da violência física, do sangue e da frieza da morte, provocando-nos uma profunda reflexão sobre a sociedade, as relações humanas e os limites da liberdade individual e colectiva. Chime é uma obra de elevado impacto gráfico, que mistura elementos psicóticos com um complexo drama humano. A direção de Kurosawa é, como sempre, marcada pela sua habilidade em criar atmosferas carregadas de tensão e agonia. Todos os enquadramentos são meticulosamente estudados, usando e abusando do silêncio como ferramenta poderosa para o aumento da tensão, do suspense e sobretudo da sensação de desconforto. Kurosawa não permite que a narrativa se desenrole lentamente, opta sim por tecer uma teia de ambiguidades dilacerantes que se desenvolvem a um ritmo frenético e, por vezes, barulhento, criando aqui uma oposição ao silêncio previamente usado. Kiyoshi Kurosawa tem uma habilidade inigualável a criar atmosferas densas cuja tensão psicológica desafia quase sempre as nossas expectativas, deixando uma duradoura sensação de angústia e desconforto, mesmo findado o filme.
Rita Cadima de Oliveira
O realismo e ressonância dos espaços, os movimentos e um soberbo trabalho sonoro são as características que fazem de Chime uma experiência provocadora do vulgo arrepio na espinha. Tudo é tão frio e desinfectado que por vezes parece que observamos as personagens a movimentar-se dentro de um laboratório de alta segurança ao invés de uma cozinha. Existe uma cena particularmente selvagem, provavelmente a mais marcante do filme, filmada com uma rara crueza que merece elogio. Ainda assim o filme é talvez demasiado conceptual e onírico, o que por vezes parece servir como desculpa para tapar a sensação de que estamos a assistir a um filme inacabado. Por outro lado, a sua curta duração (45 minutos) acabam por legitimar esse conceptualismo.
David Bernardino
É difícil explicar o cinema de Kurosawa. Tudo o que vemos ressoa, de algum modo, com a nossa experiência contemporânea, os anseios que a tecnologia e a vertigem dos nossos dias nos causam, a dificuldade generalizada de acompanhar (e lidar com) uma realidade que, em todos os sentidos, nos ultrapassa e puxa as âncoras culturais e sociais que nos ligavam a uma narrativa de como a vida devia ser. A ausência de respostas, tão notória em Kurosawa como na vida, deixa tudo no reino das sensações. Por isso, além de algumas banalidades temáticas (alienação no mundo contemporâneo, alienação dentro dos próprios rituais sociais e familiares em que participamos, influência e agressão cega e surda de sons e objetos – até ritmos – que não se compadecem com o nosso software biológico) e cinéfilas/culturais (encontramos aqui Hitchcock, Bresson e até uma revisita moderna a Edgar Allan Poe, na sequência final)… pouco mais haverá a dizer sobre um filme que precisa de ser visto, experienciado. The movie is the conversation, diz David Lynch. E, de facto, desde os projetos tardios de Lynch, dificilmente se encontra um cinema tão inclinado para o poder da sugestão – com a ressalva de que, ao contrário de Lynch, não há operação mental que nos valha: Kurosawa dispõe os elementos, cria os efeitos e deixa inteiramente ao espectador o desenvolvimento (ou não) de ideias sobre as sensações que tem. Um cinema raro, quase hermético, que, não obstante, está intimamente sintonizado à bizarria característica do nosso tempo. Nota para a sequência final, em que de um digital límpido passamos para um granulado, de qualidade mais reduzida, como se o protagonista entrasse noutro plano de realidade, via atendedor da entrada de casa. O cruzamento de realidades (humana/biológica com a digital/virtual), sem qualquer iluminação ou resposta – mas já sem espanto, apenas uma serenidade mecânica ante a confusão – configura uma bela ilustração do nosso estado-no-mundo.
Gil Gonçalves