A mitologia foi sempre base de culturas e identidades. Acrescentando uns pontos, adicionando uma personagem, retirando um momento e transformando outro, assim se passaram histórias de geração em geração até a forma centenária ou milenar providenciar uma instituição tão válida como uma bandeira ou um hino.
Neste contexto, o caso norte-americano é particularmente interessante. Todos os continentes têm as suas lendas e a sua linguagem popular. Acresce a isto, que nem mesmo a evangelização promovida pelos colonialismos conseguiu apagar o legado de diferentes civilizações milenares. No caso da criação dos Estados Unidos, a lógica ditaria tratar-se de uma nação que se prolongou por territórios que já tinham populações autóctones com os seus próprios costumes e crenças, embora progressivamente silenciadas. Contudo, seria a mesma nação fundada no princípio de “all men are created equal”. Logo, a cultura deste povo seria decorrente do diálogo e convivência entre homens e mulheres de qualquer proveniência. Será tudo isto contradição? Exclusivo dos Estados Unidos? Terra dos livres e dos bravos que abraçou o cinema como nenhum outro país. Rapidamente se tornou a Meca da indústria cinematográfica, criando géneros e estrelas. Outros povos tiveram na pintura, na poesia e na música as primeiras expressões do seu génio, nos EUA o cinema foi entretenimento, idolatria, espetáculo e tudo!
John Ford, um dos maiores do cinema americano, que nunca se furtou de pensar a História, disse:
“I’ve killed more Indians than Custer, Beecher and Chivington put together…Let’s face it, we’ve treated them very badly—it’s a blot on our shield. We’ve cheated and robbed, killed, murdered, massacred and everything else, but they kill one white man and, God, out come the troops.
E ainda:
“Being Irish, it’s my prerogative to answer a question with a question.”
Se nenhum episódio da História americana escapou a Ford, entende-se que nenhum ponto de vista, nenhuma narrativa tenha faltado. De “Think back pilgrim” e “That’s what make it our own, being born on it…and working on it…and dying on it!” a “We are fools to fight the white man’s war”, sem esquecer “She’s been living with a buck”, todas as emoções estão lá, as belas e as cruas. A cada acto vingado, cada ferida sarada, uma dúvida se levantaria, um arrependimento surgiria.
Entre este vórtice emotivo, surge “Young Mr. Lincoln”, realizado em 1939, o annus mirabilis de Hollywood (“Wizard of Oz”, “Gone with the Wind”, “Love Affair”, “Mr Smith Goes to Washington”). Para além de Mr Lincoln, Ford realizou também “Stagecoach” e “Drums Along the Mohwak”. O ano reveste-se de acrescida importância, uma vez que marca o início de duas das mais importantes parcerias na sua obra, com John Wayne em “Stagecoach” e Henry Fonda nos outros dois. As duas cabeças da águia da sua filmografia, o ying e o yang, sendo difícil dizer qual deles o mais intempestivo ou o mais sensível. Inconscientemente ou não, até as próprias entradas em cena na obra fordiana revelam algo, o zoom no pistoleiro Wayne e a envergonhada apresentação de Fonda como Lincoln.
Há aquele curioso raciocínio orwelliano de que os melhores livros nos dizem o que já sabemos. Em épocas férteis em biografias e filmes biográficos sobre atletas, cientistas, artistas, políticos e outras figuras de relevo, não será tal ideia absurda? Queremos ver aquilo que já conhecemos? Não será antes atestado de preguiça ao público, que só se move se tiver à partida uma jogada de avanço? Parece altamente limitativo entender o cinema como tal, pese embora o espelho mágico continue a encapsular tudo em duas horas, tornando o desconhecido próximo e quem sabe até em antigo confidente.
Young Mr. Lincoln apropria-se de factos e pequenos mitos sobre a figura de Lincoln até então estabelecidos e amplamente difundidos na mentalidade norte-americana. Está lá Ann Rutledge, o primeiro amor roubado, Mary Todd, a esposa não querida, Stephen Douglas o rival formidável, e, claro, o Lincoln lenhador bibliófilo. Todavia, este também é um filme sobre ramos e cercas, tartes e mulas. A democraticidade inerente na distribuição do tempo pelas personagens ultrapassa a biografia tradicional do homem do chapéu alto. Ultrapassa-se a mitologia pelo diálogo. Lincoln não é messias, é mais um na comunidade.
As mães, os jovens, os anciãos e os palhaços de Ford são transparentes na atitude. Esta genuinidade na direção de atores demarca-se do star system. A trupe que sempre acompanhou o realizador, a sua Stock Company, é uma galeria de vozes perdidas no tempo e congregadas no chão comum. Vivem em família, em comunidade, só para se acharem permanentemente assombradas pelo fantasma da separação, que também ela fustigou a presidência de Lincoln.
O franco Henry Fonda apresenta-se em plano médio num púlpito humilde e, em parte, improvisado: “I presume you know who I am, I’m plain Abraham Lincoln”. Claro que já sabemos quem ele é, mas o que nos torna ainda mais familiares para com ele é a simpatia daquele rosto numa América ainda embrenhada na mocidade, corta para duas crianças a sorrirem face ao gigante introvertido. Ainda está a dar os primeiros passos, a aprender a ler: “Reckon you can read it sir?”. O Young do título está longe de se aplicar exclusivamente ao protagonista.
O brilho solar da juventude não é guarida eterna, e cedo somos confrontados com o episódio de Ann Rutledge, remate extraordinário do prólogo. Lincoln pula a cerca para alcançá-la. Seguimo-los por travelling com a câmara atrás da cerca, obstaculizando o nosso ponto de vista. A paisagem aproxima-os, um tronco ao centro, um ramo no sítio certo e, ao fundo, o rio que o Abe tanto gosta de ver. Após a troca de algumas palavras é a vez de Ann trespassar a cerca, deixando-o a ele do lado de lá. A estação muda, Ann foi para outro mundo e Lincoln está ciente para que lado caem os ramos.
Em algumas cenas a Natureza desempenha papel de testemunha e memória. Temos o rio que Lincoln contempla, enquanto toca a jew’s harp à medida que o assobiar do amigo se aproxima de Dixie. Há neste trilhar uma sensibilidade de poeta, por um lado a tranquilidade de juventude que tira o chapéu quando vê os veteranos passar, do outro o nosso receio do porvir e do que este reserva ao futuro presidente. As árvores permanecem silenciosas e imóveis mesmo quando o terrível acontece, caberá a uma estranha nuvem vocalizar o indescritível, o indizível… E a Lua que esteve e não esteve, a Lua que é contracena de Lincoln o ator…
Sim, muito haveria por dizer da fenomenal construção de época, o comportamento da multidão, o tema de Ann Rutledge que perseguiu toda a obra de Ford (ver “Directed by John Ford” de Peter Bogdanovich), os timings dos palhaços de Ford, ou ainda o julgamento que rima com o comovente clímax de Judge Priest ou Sargeant Rutledge, sendo este mais incisivo no palco que dá à defesa de Lincoln. Abe é aqui um ator de mão cheia, abandona a habitual pose de pernas no ar e pés sobre a mesa para falar a linguagem popular. Faz trocadilhos, segue as escrituras quando necessário, nunca é condescendente, e fala para eles com a dignidade e exigência que se requere. Plano após plano vemos as testemunhas do caso enquadradas por um chapéu numa secretária, até que remata o julgamento retirando algo da cartola. Obviamente, tem direito a aplauso e ovação.
No final o que resta? A comunidade perseverou fiel aos seus princípios e costumes. A família sobreviveu às amargas intempéries a que foi sujeita. Abe permanece igual, alto, de chapéu, sempre apostos a contar uma história. Há uma diferença. Lincoln caminha para saltar novamente a cerca, desta vez munido da confiança que lhe foi atribuída, do beijo que a rapariga lhe deu. Solitário, segue rumo ao umbral que já conhecemos. Ouve-se o rosnar do céu e as nuvens respondem como pia batismal. “Gloria, gloria, hallelujah! His truth is marching home!”, o passado no mármore familiar conclui o filme, quando, na verdade, Ford nunca nos apresentou um Lincoln mitológico nem mesmo salomónico. Antes, um Lincoln de carne e osso que ainda hoje não saberia dizer se a tarte de maçã era melhor que a de pêssego. Eis o mito!