No seguimento da notícia do falecimento de Roger Corman (1926-2024), os membros da Tribuna do Cinema juntaram-se para homenagear o realizador e produtor norte-americano. Com uma vasta, diversa e marcadamente idiossincrática carreira, Corman foi responsável pelo lançamento de vários nomes incontornáveis do cinema americano, nomeadamente da era designada por New Hollywood. De Jonathan Demme a Martin Scorsese, de Peter Bogdanovich a Francis Ford Coppola, é inegável o legado deixado por Roger Corman e a sua importância na sétima arte. Mas se o seu nome é mais lembrado pelo percurso como produtor, na forma como conseguia fazer muito com poucos recursos, é sobre a sua carreira enquanto cineasta que nos pretendemos debruçar. Dos 53 filmes que compõem a filmografia de Roger Corman, detivemo-nos especificamente em dez títulos, procurando ilustrar, através desta amostra, a imensidão da sua obra. Percursor do cinema de género em Hollywood, afamado pelo seu inestimável contributo ao denominado cinema série B, Corman realizou filmes desde a década de 50 até aos anos 90. A Tribuna focou-se fundamentalmente no período de maior notoriedade da carreira do cineasta norte-americano, que corresponde ao final dos anos 50 (A Bucket of Blood) e à totalidade da década de 60. Convidamos-vos então a mergulhar connosco no universo de Roger Corman.
por Bruno Victorino
A Bucket of Blood 1959
por Miguel Allen
House of Wax: a arte como repetição da vida, num mundo onde “repetition is death”. A Bucket of Blood é uma divertida e perspicaz sátira ao movimento beatnik e suas recorrentes contradições : viver pela arte, mas poder viver através dessa arte; recusar uma noção permanente de arte, mas ter de objectivar uma arte; identificar um (novo) objecto artístico, mas recusar todos os dogmas artísticos do Passado.
Corman sempre apreciou a associação entre humor e horror, identificando o riso como uma reação próxima do susto. Como noutras das suas “comédias”, em A Bucket of Blood, um jovem banal, desvalorizado pelos seus pares, vê-se inadvertidamente na pele de um assassino em série. O filme segue Walter Paisley (Dick Miller), empregado de mesa de um café artístico e aspirante a escultor, apesar da sua evidente falta de talento (e de noção). O destino de Walter é alterado numa noite quando, a meio de um frustrante e infortuito processo criativo… assassina acidentalmente o gato da sua senhoria, que se escondera dentro (!?) de uma parede. Abismado pelo sucedido, e inspirado por um poema que ouvira naquele serão, Walter decide cobrir o cadáver do gato com barro, e a sua “escultura” revela-se um inesperado sucesso local, catapultando Walter para um inusitado estrelato. Claro que, em seu torno, todos estão tão determinadamente focalizados sobre os seus próprios “conceitos” que simplesmente não conseguem ver para além do que imaginam. E será o ingénuo Walter quem progressivamente se perde pela sua terrível falta de visão.
Um filme coberto de sombras fascinantes – nomeadamente quando Walter bate com a cabeça no candeeiro de tecto do quarto, poucos instantes antes do seu primeiro crime (ou obra). Não seria completamente descabido imaginar um filme onde o protagonista “adormece” nesse ponto narrativo e tudo o resto se trata simplesmente de um pesadelo – que Corman assinala com um belíssimo, e muito criativo, trabalho de luz e sombra. A Bucket of Blood é também a imagem arrasadora e divertida do delírio de grandeza de um pobre aspirante a artista.
The Wasp Woman 1959
por Eduardo Magalhães
Entre os diversos filmes de monstros que Roger Corman realizou e produziu, “The Wasp Woman” ocupa um lugar muito especial. Muitas vezes ridicularizado e acusado de ser um mero “schlock maker”, Corman serve-se de uma premissa inverosímil: um cientista desenvolve um produto cosmético que reverte o envelhecimento através de enzimas de geleia real de vespa, para mostrar a sociedade corporativa dos fifties. Porém, não se pense que se trata de um filme de “mensagem”. Repleto de gags de discrição variável que vão das secretárias tagarelas ao rádio avariado do guarda-noturno, há também espaço para várias interpretações do horror moderno. Os cortes anunciam um progressivo desfasamento entre criador (Dr. Zinthrop) e criatura (Janice Starlin, fundadora e CEO das Janice Starlin Enterprises), no primeiro momento de fraqueza do primeiro transitamos para a afirmação da segunda. O que há de diferente neste horror para um Frankenstein ou Drácula, é a transformação da abominável diferença ou maldição em vício. O monstro já não se importa de o ser, desde que consiga trepar por esta e aquela fortaleza. Enfim, Corman não podia fazer outro “Cat People“, os tempos eram outros.
Afinal, tal como as abelhas, a nossa sociedade precisa de reis e rainhas apresentáveis, caso contrário são substituídos ou expulsos, daí a súplica de miss Starlin: “One more! You’ve got to make more, Zinthrop!”.
The Little Shop of Horrors 1960
por Rita Cadima de Oliveira
Em 1960, Roger Corman cria um barbecue botánico em The Little Shop of Horrors. Filmado em dois dias, este filme resulta pelo uso de três câmaras, sendo filmado em médios e longos planos, assemelhando-se a uma comédia. De duração curta mas longo em excentricidade e planos macabros, o falecido realizador elabora este b-movie de terror pejado de repugnância e sangue. Seymour é um jovem que trabalha como ajudante de florista para o seu patrão, Mr. Mushnick, e está apaixonado pela sua colega de trabalho, Audrey. Enfrentando um momento de fraqueza económica, o negócio exige aos seus trabalhadores alguma criatividade e empenho no que diz respeito ao aumento de visitantes e vendas. Seymour aproveita esta deixa para atrair para si a atenção e admiração de Audrey, ao trazer uma planta carnívora, elemento da flora nunca antes visto pelos clientes da loja, mas também pelos seus pares. Sendo exibida como uma raridade, esta planta traz consigo um pesadelo, alegoricamente mascarado de dinheiro e retorno à pequena florista. O facto de ser um filme de baixo orçamento, confere-lhe algumas reticências mas também exigências na potencialidade do seu lado absurdo e sinistro. A planta não só fala como também não sobrevive sem carne e sangue humanos. Esta parte neurótica é chocante e perturbadora, apesar do seu lado cartoonesco e da sua vibe humilde. É um filme masoquista, de conceito assumidamente sangrento e impacto visual grandioso, sobretudo nas partes em que a planta é alimentada por pequenas gotas de sangue, tornando-se gradualmente uma devoradora humana. Roger Croman consegue, sobretudo, fazer-nos rir, dando como bónus a esta comédia, elementos de terror.
The Pit and the Pendulum 1961
por Eduardo Magalhães
A cor como domínio do sonho. Entender o acto de sonhar ao tomar o trem do inconsciente e dar palco ao delírio e fúria já não emoções ruidosas, mas manifestações do passado e presente. O que é o sonho se não a diegese automática, reflexo do corpo, da memória eventualmente imbuída de medo e desejo.
Muito cara aos românticos e reclamada pelos modernistas, a recorrente figura da mulher morta surge nimbada numa estreita linha de horizonte, interrompendo a constelação soporífera do seu lamento. Parece furtar o poeta da ânsia de viver, apesar de ser sinónimo da mesma luz que o instiga e acorda da inércia. Este brilho liberta-o. O sonho é outro, não será mais refém de uma inspiração amorfa. GRITA, vê-se grão-duque chanceler, operário da nova locomotiva, inquisidor-mor dos seus tormentos, lê as práticas ocultistas e conclui que o atavismo é charada de biólogos cansados. Ele é a sua própria tradição. Vermelho, azul, preto e mais cores que surjam, avante pelo trilho que descobriu, rumo ao afluente da inconsciência… Porém, reconhece o sangue, identifica o seu corpo, materializa os antepassados em alavancas do porvir. Erigiu um espelho. Aqui jaz a má fortuna do poeta. Seguiu a musa ao reino desconhecido e lá pediu para olhar para trás. Dizem que até hoje se encontra à procura de saída…
The Intruder 1962
por Eduardo Magalhães
Correndo inúmeros riscos, Roger Corman realizou e produziu em pleno Sul dos Estados Unidos dando então os primeiros passos para o fim da segregação racial, “The Intruder”, filme potente (também) sobre as temáticas do populismo e racismo. No centro da ação está um ardiloso arrivista, Adam Cramer, interpretado pelo grande e único William Shatner. Chegado a uma pequena comunidade sulista, desejoso de poder e fazer uns dólares fáceis, começa a espicaçar a turba. Aponta problemas sociais e políticos, desenha raciocínios motivadores, maravilha com a sua oratória esbracejada, e, claro está, arranja um bode expiatório: um afro-americano num liceu que caminha para a dessegregação (daí o delicioso duplo sentido do título).
Até aqui, nada de impensável, já existia uma certa tendência do cinema americano a encarar o racismo sem pejo (Imitation of Life, Sargeant Rutledge, ou ainda o célebre To Kill a Mockingbird estreado poucos meses após o filme de Corman). “The Intruder” distingue-se pela rapidez, bola-de-neve de preconceitos e falácias movida por uma tenebrosa fúria popular. Tudo se move sob a batuta de Shatner desde o primeiro momento, como anos mais tarde recordou o realizador:
“The opening sequence is designed to lead us into the town and the situation. I felt the way to do it was to be on the bus with Adam Cramer, as he’s entering the town. By the end of the sequence, I panned over unto Bill Shatner and we saw then we were in his point of view… and he’s thinking of what is going to happen”. Podemos a isto acrescentar, que Shatner observa, a partir do autocarro, os trabalhadores no campo como uma ave de rapina contempla uma planície.
Não se espere grandes diatribes a perorar sobre o horror do racismo ou a meditar sobre o futuro da nação. Não há nem um radioso final, nem carnificina desmesurada. O mal em “The Intruder” acaba simplesmente por esmorecer como um baloiço que acaba por parar… aguardando pelo próximo!
Nota: aparentemente, este foi o único filme de Corman que deu prejuízo, é preciso dizer mais?
The Terror 1963
por David Bernardino
Um filme gótico seminal, The Terror, marcado por vários problemas de orçamento que se notam no produto final. O filme passou pela mão de vários realizadores. Corman terá dirigido as cenas do lendário Boris Karloff, na pele do barão Von Leppe, senhor de um castelo semi abandonado na floresta, que acolhe Jack Nicholson na pele de um cavaleiro francês, em 1806, perdido e salvo pelo fantasma da falecida mulher do barão. Um filme que brilha pelos seus elementos de géneros, efeitos práticos, e cenário atmosférico, sombrio… repito a palavra: gótico. O ritmo irregular e os erros de continuidade denotam os problemas de produção. Foi Francis Ford Coppola, na altura com 24 anos, que tomou as rédeas do projecto com Dennis Jakob, Monte Hellman e Jack Hill a terem que filmar diversas cenas, como que segmentadas. O produto final é um pastiche irreverente que por isso mesmo é fonte de interesse para os fãs de género.
X: The Man with the X-Ray Eyes 1963
por Eduardo Magalhães
Genial Ray Milland na obra-prima de Corman. Ver e poder ver além do insuportável. Algures entre um Fausto violento e uma circus freak jaz a condição do Dr. James Xavier, sábio cujas experiências laboratoriais o dotaram do poder de super visão. Mas o que contempla este nosso super-herói?
“The city… as if it were unborn. Rising into the sky with fingers of metal, limbs without flesh, girders without stone. Signs hanging without support. Wires dipping and swaying without poles. A city unborn. Flesh dissolved in an acid of light. A city of the dead.”
Não bastava a cocktail party em que o malandro Milland espreita para onde não deve, ou as sequências psicadélicas que o prendem e atormentam, num golpe brilhante de casting temos ainda Don Rickles como mestre-de-cerimónias, o Bobo do Lear/Gloucester de Milland. Rickles incita-o a uma estranha representação, em recinto sujo, aberta ao público, que se ri e aplaude o espetáculo. Numa atmosfera bem diferente dos ensaios em laboratório fechado e esterilizado, o Dr. Xavier protagoniza uma Ciência tornada entretenimento barato, saída menos má para o homem que vê tanto como os all-seeing gods.
Porém, por onde quer que Corman ponha a câmara qual prisma maquiavélico, quer seja no casino ou no automóvel, lá estão as cores a perseguir e baralhar o doutor. Nunca a encenação do realizador foi tão obstinada, em cada plano geral uma multidão desconfiada, em cada grande plano de Milland um olhar de terríveis sonhos.
The Masque of the Red Death 1964
por David Bernardino
Foi em 2017 que Roger Corman veio ao Motelx como convidado de honra e apresentou na belíssima sala do Tivoli o seu filme de 1964, The Masque of the Red Death, um filme adaptado de um conto de Edgar Allan Poe em que um príncipe europeu por volta do séc. XIV, magistralmente interpretado por Vincent Price, adorador de Satanás, aterroriza os camponeses enquanto dá festas luxuosas no seu castelo, protegendo os seus ocupantes de uma peste vermelha que assola a região. Deliciosamente teatral, The Masque of the Red Death é um filme de género fantástico superior, uma reflexão influenciada pelo “Sétimo Selo” de Bergman sobre luxúria, desejo e filosofia pós-morte pelas acções em vida, com uma realização inspirada de Corman que utiliza uma palete de cores fortes impressionante que só se veria assim elogiada no écrã com Suspiria de Argento para contar a sua intrigante história. O conto medieval de mistério dificilmente será superior a The Masque of the Red Death no cinema.
The Wild Angels 1966
por Miguel Allen
Um filme onde muito se fala muito em “ser livre”, e uma peça importante do cinema americano de contra-cultura dos anos 60. Após uma sequência de adaptações de Edgar Allen Poe, entre outras experiências no cinema fantástico, Corman abordou um “flagelo” social do interior americano, a partir de um faux-documentário exploitation em torno dos Hell’s Angels. O “retrato pitoresco de um modo de vida, mais do que um verdadeiro enredo”, nas palavras de Corman, The Wild Angels foi baseado em diferentes episódios relatados por membros do grupo de motoqueiros ao realizador – admitindo, ainda assim, que parte das histórias que utilizou seriam forçosamente fantasiadas. The Wild Angels tornar-se-ia referência essencial do cinema biker e lançou Peter Fonda enquanto figura do “género”, servindo-lhe de inspiração directa ao argumento de Easy Rider (Dennis Hopper, 1969).
Vestidos de preto e cabedal, ornados com cruzes de ferro e suásticas, movidos por cerveja e marijuana, os Angels seguem o seu “sem rumo” em busca de emoções fortes (a saber, “to ride our machines without being hassled by The Man, (…) [to] get loaded, (…) [to] have a good time”). Desde o genérico de abertura do filme, ao som das guitarras fuzz de Davie Allan & The Arrows, o lugar onde querem chegar é “anywhere but here“, mas enquanto ainda “aqui”, combrem o seu caminho de violência, ódio, e destruição. “Not Children of God, but Hell’s Angels!”, o grupo de bikers será a resposta agressiva, polémica, e desenquadrada (porque juvenil) que oferecem à sociedade construída pelos seus pais.
Um elogio niilista à morte através da violência absoluta, Corman aborda parte do filme como um western sobre rodas contemporâneo. Two-Lane Blacktop, de Monte Hellman, que fez a montagem deste The Wild Angels, vem à ideia. Mas será nas suas confusas e muito cheias cenas de festa, e nomeadamente no seu final, naquela destruição pagã e sexualizada de um funeral cristão, que o filme verdadeiramente se transcende. A ausência de um ponto de vista psicológico é francamente refrescante, sobretudo numa obra que cobre o seus “heróis” desta decadência social, com símbolos e gestos tão hediondos e chocantes. Mas ao seu centro, Heavenly Blues (Peter Fonda) – esse misterioso Anjo introspectivo que, na sua qualidade de “presidente” e líder, é o elemento mais contraditório da banda -, será o primeiro a chegar à conclusão suicidária de que “there’s nowhere to go“.
The Trip 1967
por Miguel Allen
Peter Fonda toma LSD. The Trip não é um filme particularmente complexo de um ponto de vista narrativo, mesmo para Corman. Ainda assim, o realizador liberta-se aqui a uma experimentação cinematográfica pura, a partir de imagens de origem, conteúdo e a ritmos variados. A ideia foi, é evidente, representar, “de forma neutral”, os bons e os maus momentos de uma primeira experiência com drogas alucinogénicas. Um filme muito do seu tempo, e um filme muito ligado à cidade de Los Angeles – estreado no “Summer of Love”, de 1967, The Trip seria um dos maiores sucessos da carreira de Corman.
Uma experiência psicadélica, uma viagem caleidoscópica de auto-descoberta, uma “Lovely Sort of Death”. The Trip é desorientado (mais do que verdadeiramente desorientador), e abordamo-lo hoje, forçosamente, como uma curiosidade de “outros tempos” (na verdade, tal como muitos dos espectadores “desses tempos” teriam experimentado o filme dada a impossibilidade pessoal de experimentar com as ditas drogas). E o valor principal desta trip, talvez seja, finalmente, o facto de Corman poder explorar, durante a longa rêverie que preenche a quase integralidade do filme, uma espécie de compilação “livre” das imagens da sua obra. Mais especificamente, entre imagens coloridas de carácter sexual, “mandalas” psicadélicos vintage, rock distorcido, ou as necessárias incursões numa Magical Mystery Tour, as curiosas cenas de uma falsa adaptação “perdida” de Edgar Allen Poe, com cavaleiros medievais revestidos de negro numa praia rochosa (que relembram sigularmente Det Sjunde Inseglet).
O filme teve uma influência considerável nas novas “experimentações” de Hollywood – nomeadamente em Easy Rider, que voltaria a reunir Dennis Hopper, Peter Fonda, e Jack Nicholson (que assina aqui o argumento). Mas apesar do sucesso, Corman não voltaria a abordar a drugsploitation, dada a sua noção de que o “género” se esgotaria rapidamente, tanto a nível criativo como junto do seu público.