White Noise: Perdidos no Supermercado

Miguel AllenJaneiro 25, 2023

Por tanto que a produção de White Noise seja cuidada e, em falta de termo mais adequado, inusual, parece francamente difícil fazer uma ideia clara, abrangente, daquilo que é afinal este filme. Que não se depreenda por isso que se trata de um filme difícil, ou demasiado abstrato. White Noise é apenas longo e aborrecido na sua insistente excentricidade, sempre procurando, mas jamais conseguindo, enevoar a tela com aquela fumaça colorida que baralha Inherent Vice.

A comparação com o filme de 2014 de Paul Thomas Anderson é natural e não muito original – ambos os filmes adaptam livros com narrativas algo trippy, reputados por serem impossíveis de transpor para cinema (porque raio existe um tal conceito, será difícil de explicar) – mas algo injusta, por tanto evidenciar as fragilidades do filme de Baumbach. Inherent Vice é um noir com os pés na areia de praia, onde podemos pouco perceber, mas cujo percurso, hesitante, entre suspeitas, indícios, e alguma tristeza, sempre em desequilíbrio, é simplesmente far out. Já neste White Noise, nada fica exactamente “por perceber”, mas o nosso Noah não consegue trabalhar as cores do livro para além da sua rasa superficialidade, e tudo se revela, finalmente, pouco marcante. E claro, num filme que se quis tão idiossincrático e umbilical, é fácil, em contrapartida, guardar em mente aquilo de que não se gostou. Tanto Driver como Gerwig são singularmente irritantes: Baumbach simplesmente não sabe como dar forma ao humor do livro (hipotético – porque este vosso crítico nunca o leu) no seu filme, seja na condução das cenas ou, sobretudo, no jogo dos seus actores. Ao ter abandonado o doce conforto de Brooklyn sob a lente de Woody Allen da sua restante filmografia, Baumbach patina aqui atrapalhadamente, e logo numa das cenas iniciais, em que o casal discute as indumentárias do primeiro dia de aulas, tudo parece forçado e francamente fora de tom. As crianças que compõem a atípica estrutura familiar, são divertidas e queridas, mas são inevitavelmente um pano de fundo perante a dinâmica do casal que está no centro da acção, tanto que a mais nova nem chega propriamente a existir para além do mero adereço – “where’s Wilder?”.


Apesar de sequenciado em oito capítulos, podemos na verdade dividir o filme em duas partes principais, que revolvem extravagantemente sobre os temas da morte e da vida numa “família nuclear” recomposta. Froot Loops e medicamentos sujeitos a receita médica, prazeres fugazes e o fim dos nossos dias. Na sua primeira metade, com toda a trama antes e em torno duma “nuvem tóxica” negra (arquivar sob catástrofe ecológica; quarentena), o filme é uma espécie de “faux-Spielberg on dope”, onde nem Spielberg (sempre rasteirado pela penosa ironia do discurso), nem a “dope” são singularmente fortes. No melhor dos casos, tudo parece funcionar como uma versão muito pretensiosa do National Lampoon’s Vacation (como já referido por outros), com metade do humor, metade da noção do que é, enfim, uma família, e claro, uma sobrecarga de significados mal explorados e maioritariamente conduzidos pela sátira (francamente datada) à sociedade de consumo, que atravessa todo o filme.


A segunda metade, ocasionalmente de pendente quase lynchiana – aquele sinistro motel com Mr. Gray a dizer baboseiras, corpos deitados sobrepostos, e claro, awkward acting -, revelar-se-á mais interessante na sua abordagem à mortalidade, o medo e fascínio que nos suscita, mas (ainda) menos memorável a nível cinematográfico (e estético) do que o primeiro lado do filme. E tudo terminará, claro está, numa estranha capela (mais não diremos) algures entre Romeo + Juliet (1996) e November Rain. Na verdade, não encontrando um propósito, e sem uma clara noção de como dar forma e lugar à difícil profusão de ideias, conceitos, e tempos da sua narrativa, o filme nunca evidencia – terrível pecado – a sua duração provável, e é com alguma surpresa que descobrimos que, passadas a dita quarentena e a famosa nuvem da nossa angústia que a provocara, nos encontramos ainda a meio da trama (por altura da não muito divertida visita ao psiquiatra). Momentos antes, na última paragem da trapalhona fuga em família, a cena do sinistro “déjà vu” gritado pelo “homem com a televisão” (como é nomeado nos créditos Bill Camp) esboça uma potencial charneira narrativa, cujo efeito (cuja vertigem !) nunca se chega minimamente a realizar.

Enfim, é muito positivo que Baumbach tenha decidido abraçar tanto risco no seguimento do seu filme, digamos, mais federador – vê-lo malbaratar assim o seu Kramer vs Kramer (e tudo o que lhe antecedeu) tem algo de autoral. Mas em tudo, este exercício cai ao lado de qualquer intenção e, finalmente, passa-nos completamente ao lado. Não é louco, não é confuso, não é estranho, não é mesmo divertido, não é minimamente comovente ou enternecedor (Spielberg onde estás ?). São esboços de ideias terrivelmente carregados, são conceitos e significados em saldo, são imagens giras para dançar, mas tão cansativas e demoradas. Hitler, Elvis, e “the great american car crash”, ao som de LCD Soundsystem. Just noise – mas não branco, de todas as cores e feitios.

Miguel Allen