Via Norte
Num mundo cinematográfico cada vez mais químico e artificial, de histórias tão dissimuladas e sintéticas, Paulo Carneiro volta a não conseguir distanciar-se emocionalmente da temática à qual se submete. E ainda bem. Via Norte não é um filme sobre carros mas é sim um filme sobre uma outra máquina, a humana. É um filme sobre humanidade, mostrando-nos que ainda existem realizadores com cunho e identidade, e a dele é aparecer à frente da câmara, sem pudores ou relutâncias, retratando de forma aguçada e sem complexos, a diáspora luso-suíça e todo o preconceito a ela associado. Via Norte é a demanda, a procura pelo outro, é também e ao mesmo tempo, o exacerbar das diferenças como a amenização das mesmas. Do início ao fim da obra, é o carro, como elemento estético de aproximação social, que veicula as relações humanas e o diálogo, servindo de igual forma como meio para originar um dos maiores clichés nacionais: a associação do emigrante ao carro quitado, ao carro vaidoso e ao regresso veraneante para fazer montra das conquistas financeiras anuais. Aparentemente, é esta a simplicidade que se pode denotar nos primeiros minutos do filme, contudo, Via Norte é tudo menos singelo. É um filme mordaz, provocante, que toca na velha ferida. O diálogo não é miserabilista nem de autocomiseração, os homens reconhecem tanto a sua dor como o seu mérito, assumindo as suas incoerências, próprias de quem é humano e de quem sente saudade de um passado, mesmo que este passado não lhe tenha sido leve, nem na pátria de origem nem na de refúgio. Porque apesar das dificuldades serem as mesmas, o homem já não o é.
Viagem ao Sol
Viagem ao Sol, de Ansgar Schaefer e de Susana Sousa Dias, é um documentário confeccionado com um impressionante espólio pessoal no qual constam imagens de arquivo, vídeos super 8 e testemunhos, suspiros e saudosismos de crianças austríacas enviadas no pós-guerra para Portugal, um país que foi falsamente neutro durante a 2ª Guerra Mundial, e que vivia uma ditadura obscura e implacável. Num esforço entre as Cáritas Portuguesas e uma insinuante acção propagandista do Estado Novo, 5.500 crianças austríacas viajaram de barco até Portugal, tendo sido acolhidas por famílias portuguesas e não só, também em seminários e conventos.
A cura física e psicológica, o amenizar do trauma, a recuperação das mazelas e da violência da guerra, foi o pretexto para a procura do solarengo e quente solo português, do seu calor humano e meteorológico. Estas crianças foram, na sua maioria, acolhidas por famílias abastadas que viviam em proeminentes moradias, que tinha pessoal doméstico e regalias cuja maioria do país desconhecia e não possuía. Para estes jovens, e de acordo com os testemunhos do filme, foram tempos de reaprendizagem: de viver, de comer, de estar e de ser. Férias também, mas sobretudo, um ano de conexão com um paraíso que lhes foi posteriormente difícil deixar. Uns nunca o fizeram. E ficaram.
Tanto o contraste com as pérfidas condições de vida do seu país de origem como a disparidade de vida entre ricos e pobres em Portugal, marcaram profundamente estas crianças. Por isto, a Viagem ao Sol estabelece múltiplas ressonâncias com a actual Europa, que vive paredes meias com guerras várias. Viagem ao Sol é uma reflexão-retrato das crianças em situação de conflito e pós-conflito, potenciando o seu olhar, lembrança e memória, em jeito de revelação de realidades desvanecidas pelas narrativas oficiais. As declarações dos outrora jovens, agora adultos, são sempre acompanhadas com detalhes sonoros que enriquecem o peso da mensagem estética (sons quotidianos, suspiros, choro, relógios, animais, sinos e até o tilintar de talheres). Estes ecos do passado, por meio de retratos íntimos e pessoais, revelam-se um verdadeiro confessionário numa viagem ritmada e coesa, com uma directiva cronológica sem retrospectivas mas absorvente.
Paralelismo entre Via Norte e Viagem ao Sol
Portugal. Quem o vê e quem o viu. No Comboio, a distribuidora responsável por Via Norte e por Viagem ao Sol, teve a braços dois documentários que se complementam e equilibram, roçando tristezas e amarguras, mas esboçando alguma felicidade no retrato de vidas resultantes da diáspora. Ambos os documentários abordam a viagem, a saída e a chegada, um deles no formato de acolhimento e o outro, no formato de partida. Lá fora ou cá dentro, Portugal e as suas particularidades é o que ambos têm em comum. Na verdade, aqueles que chegam e aqueles que partem, assemelham-se no saudosismo, na melancolia e na dor de quem pretende sempre retornar a um sítio que sente como casa. Paulo Carneiro trabalha o barulho das luzes, o arranque dos motores, os peões e todo o vocabulário ligado à arte do transformismo automóvel para expressar o amor que esta comunidade sente por algo que os representa e une, em todos os solos por onde passam e no qual se tentam restabelecer.
Os portugueses que emigraram para a Suíça parecem aceitar, sem ressentimentos mas com algum desgosto, as intransigências burocráticas laborais nacionais, a escassez de trabalho e a inexistência de uma remuneração justa. No diálogo que Paulo Carneiro vai mantendo com os mesmos, é sensível e algo emocionante, a forma como não menosprezam o seu país, mesmo que a dor da distância pese. Por oposição, na Viagem ao Sol, as crianças austríacas desprezam e desdenham a Áustria bélica, representativa do seu passado de dor, revelando frieza e depreciação pelo parca infância e momentos familiares cuja guerra não lhes permitiu experienciar. Mais melindrante do que isto, foi mesmo o assumir, por parte de certas crianças agora adultos, que se esqueceram da sua língua-nativa mas também que não sentiam saudades dos seus pais. E país. Viagem ao Sol é um filme bem mais duro do que a sua forma física nos leva a crer. A dureza verbal dos testemunhos, o barulho das bombas, a inconveniência sonora do choro, o desconforto visual da destruição, o desequilíbrio social em era salazarista, tudo isto se torna pesado para resumi-lo a um documentário baseado em imagens de arquivo.