Verdade ou Consequência? – Um filme de Sofia Marques com Luís Miguel Cintra

Rafael FonsecaSetembro 3, 2024

Há um conto de Jorge Luis Borges, chamado “A Morte e Bússola”, que é passado na velha e vazia mansão de Triste-Le-Roy – digo na velha mansão e não numa velha mansão, pois tanto quanto sei talvez só exista esta única mansão em Triste-Le-Roy – curiosamente – e não acidentalmente, pois não creio que tenha havido acidente algum, a mesma onde Víctor Erice situou recentemente o seu filme Cerrar Los Ojos , a mesma Triste-Le-Roy, com o busto de Hermes bifucardo, a chuva. O conto é um policial. Acompanha um detective, um “raciocinador”, que encontra em três assassinatos simétricos no espaço e no tempo uma geometria cabalística, e a certeza de um quarto ponto, localizado na mansão. Ao chegar, é-nos revelado que todo o mistério foi criado (foi posto em evidência, ou, para me aproximar do Genet que cita Luís Miguel Cintra, apareceu) para o levar a ele, o investigador, àquele ponto no espaço, para a concretização de uma vingança. Antes de ser morto, profere assim ao seu assassino:

No seu labirinto sobram três linhas. Eu sei de um labirinto grego que é uma linha única, recta. (…) quando noutra reencarnação você me der caça, finja (ou cometa) um crime em A, depois um segundo crime em B, a oito quilómetros de A, a seguir um terceiro crime em C, a quatro quilómetros de A e de B, a meio caminho entre os dois. Espere-me depois em D, a dois quilómetros de A e de C, de novo a meio caminho. Mate-me em D, tal como agora vai-me matar em Triste-le-Roy.

O seu homicida, o pistoleiro Scharlach, responde: Para a outra vez que o matar, prometo-lhe esse labirinto que consta só de uma linha reta e que é invisível, incessante.

Este labirinto urdido, por nós, pelo nosso assassino. Para conduzir ao quê? Ao conto de Borges pertence uma introspecção privada minha, mas ressoavam em mim as palavras do argentino durante os primeiros compassos de Verdade ou Consequência, de Sofia Marques.

O filme, é-nos indicado, trata-se de um retrato de intimidade e convivência entre a actriz e realizadora e o seu amigo, actor, Luís Miguel Cintra, um filme do presente, rodado e composto por imagens dos últimos cinco anos, longe de intenções de um objecto biográfico inevitavelmente menor estilo “vida e obra”, menor pois quando se fazem esses filmes eles são invariavelmente mais impessoais, invariavelmente menos interessantes. Isto é sublinhado, e é importante: o filme é um retrato de agora. As fotografias de família e os excertos da obra passada não são “inseridos” no filme para a nossa visualização pessoal, mas sim vistos por meio de impressões em folhas A4 nas mãos de Luís, ou no Youtube aberto no seu computador pessoal. É uma forma de estarmos com ele a ver, na sua casa, com 75 anos, e não num éter arquivista do “completo”. No único momento a que assistimos a um gesto de grande abarcamento do trabalho de Luís Miguel Cintra na Cornucópia, as fotografias de cena no ecrã são passadas em silêncio, rapidamente, uma ou mais por segundo, sem banda sonora, sem conversa, num dos momentos mais belos do documentário.

O filme, é claro, é superlativo. É de tal modo natural a forma como se insere numa linha que é Luís Miguel Cintra, talvez a tal linha invisível, incessante de que fala Borges – que nos parece impossível que fosse de outro modo. Uma continuação absolutamente natural, primeiramente (é obrigatório dizê-lo) de Lívio, de César Monteiro, mas também do cavaleiro de Silvestre, do personagem de Ninguém Duas Vezes, esse filme que se atreve, e é desconhecido de uma forma criminosa, a ser um dos maiores filmes do cinema português, do Don Rodrigue, imenso! uma vida por si já completa em Don Rodrigue, de Le Soulier de Satin, do Visconde de Aveleda, formidável, de Os Canibais, de Carlos Paiva em Vale Abraão, em mesas de refeição com Ruy de Carvalho ou com Leonor Silveira, do Engenheiro de O Estranho Caso de Angélica, nessa cena de pequeno almoço que é um profundo portento, misteriosa, prenhe e mágica ao infinito, uma continuação até, pela existência das missivas, pela existência das recordações, do Correspondências de Rita Azevedo Gomes, que tanto também me impressionou. Porque digo isto? Continuação como? Verdade ou Consequência é Luís Miguel Cintra continuado, mas não enquanto cidadão ou biografia coleccionada, não enquanto “filme-súmula” – é na rejeição completa que o filme faz a essa redução que este se funda e que é brilhante! – enquanto actor, enquanto metáfora. No texto que LMC escreve sobre o espectáculo da Cornucópia Fingido e Verdadeiro, recorda:

“E se no teatro a metáfora é o próprio homem, se a metáfora sou eu, transformo-me, transcendo-me (…) O texto O Funâmbulo de Genet, que para mim é um texto sagrado, explica ao actor este seu ofício: «Que ele (eu, tu, actor) acabe por não existir senão na sua aparição»”.

Sofia Marques, com Luís Miguel, filmam uma aparição. Nada tem isto de fingimento, absolutamente nada, ou, mais claramente, nada do que é fingido, que será bastante, tem de inverdade: Fingido e Verdadeiro, também um dos títulos anteriores do filme, “nega a oposição”. A máxima de Santo Agostinho: “A Verdade é a forma das coisas verdadeiras”. É essencial esta compreensão.

Acompanhamos Sofia e Luís em confidências e impressões, em passeios, por Madrid, a ver de fora o edifício onde os pais moraram e onde Luís imagina que foi gerado, a casa de Lisboa, ladeada por santos, a casa de Gaia, que forma, como diz Cristina Margato de forma tão justa no artigo para o Expresso sobre o filme, “camarote sobre o palco vivo que a Foz e a Ribeira do Porto lhes oferecem” – e é de facto impressionante o espectáculo de movimento filmado por Sofia com os reflexos da janela sobre a secretária de Luís Miguel Cintra, como é impressionante a evocação permanente, quase indistinguível da própria visão, da margem norte do Douro em relação a – basta um exemplo – Porto da Minha Infância de Oliveira, fenómeno que não escapa a Sofia, fenómeno que não escapa a Luís, fenómeno que não escapa a ninguém que veja Oliveira e olhe por uma janela para a Ribeira do Porto, simplesmente porque é Oliveira o cineasta que por excelência se dedicou à verdade nas formas das coisas, como Luís Miguel Cintra é dedicado sem tréguas à verdade nas formas das coisas, e com isso ao mundo por inteiro.

Pelas salas de casa, a respiração de Luís é pesada ao falar. O filme não o dissimula, pelo contrário. É uma respiração que atravessa a montagem, ouvindo-se através dos planos, como é uma respiração que transcende a montagem: é inevitável a recordação da respiração audível de Godard em O Livro de Imagem, ao redor e através da moviola. Permito-me ainda recordar Brisseau confinado ao domicílio para as suas maiores obras-primas. É o Actor mostrado em casa, no seu mundo mais povoado e fulgurante: o convívio doméstico da imaginação.

Naquela que é talvez a sequência mais bela do filme, Sofia filma um jovem, com os seus doze anos, sentado frente a Luís Miguel. O jovem, que é actor, tem ensaiado O Espelho de Jesus, criação teatral de LMC onde interpreta uma figura bíblica e aqui, na sala do mestre, fá-lo escutar algumas perguntas, em jeito de entrevista, sobre Manoel de Oliveira. Luís ouve e responde.
Sofia corta para um contracampo em grande plano do rosto do jovem em conversa. O momento é fabuloso, perfeitamente joyceano, podemos quase escutar a criação de personalidade em operação na mente do adolescente, o diálogo interior que terá um dia em retrospectiva sobre este momento que está a viver agora. A escuta atenta do seu mestre, e do seu mestre sobre o seu mestre, num convívio que parece sedimentado numa qualquer transmissão milenar. Numa cena seguinte, o jovem em palco pensa em voz alta sobre se conseguirá marcar um corte de cabelo nos próximos dias ou não. Sofia mostra-se reticente em dar um final ao filme. Como a própria confessa, não quer parar de filmar. Então, atravessamos uma estrada ao pôr-do-sol. Olhamos para as gaivotas numa Gaia coberta de nevoeiro. Estamos a ver o final de A Carruagem de Ouro de Renoir na sala de Lisboa: Filipe, Ramón e o vice-rei desapareceram. Agora fazem parte da plateia. Tens saudades deles? Um pouco.

No teatro ou na vida, fingido ou verdadeiro, não interessa, tudo o que se passa, tem razão por si. E o que conta no teatro não é a ostentação das máscaras nem a exibição de nada (não, o teatro não é para vaidosos, é para modestos), é o jogo connosco e com os outros que devia ser a vida mas que a vida não deixa viver.” A este jogo, Luís Miguel Cintra chama neste filme, se bem me recordo, um terreno de alegria permanente. É-o sem dúvida. É uma benesse que nos irá valer para sempre.

 

Rafael Fonseca