Un homme qui dort brota das profundezas do cinema francês – da aliança entre Bernard Queysanne (1944 – ), realizador que passou despercebido com os seus poucos trabalhos, e Georges Perec (1936 – 1982), autor de renome, cujo livro homónimo é a base para esta inexplorada produção de cunho metafísico que assevera a potencialidade da palavra escrita, quando pensada metamorficamente.
O seu trunfo é, com efeito, o texto. Não o texto por si só, mas o texto como corpo vivo, materializado, enviesado pelo cinema. Este filme funciona como um mecanismo deslumbrante. A imagem atua sobre a voz, a voz sobre a imagem – somos confrontados com uma personagem masculina (Jacques Spiesser), inexpressiva e mecânica, que não tem voz, que não se deixa transparecer por vontade própria; por outro lado, ouvimos uma voz feminina (Ludmila Mikaël), sintética e hipnótica, que toma as rédeas da narrativa, perscrutando tudo o que aquele outro pensa e faz, dirigindo-se-lhe diretamente, num desafiante jogo de (não) concordância. A soberania da imagem, contudo, nunca é questionada, já que também ela, muitas vezes, nos transporta até ao mais ínfimo pormenor visual para, partindo daí, construir, paradoxalmente, a anulação da existência. A música é um outro contributo indispensável: cria uma ambiência terrífica, mas sensível, com um toque de modernidade que a faz extravasar o tempo em que foi produzida.
Impressiona como exercício de quietude, de marasmo – a repetição dos factos da vida do homem é exaustiva. Porém, se existe a sensação de frustração devido às impetuosas (re)voltas que as palavras dão, esta logo se aligeira, pois é simples compreender que está ao serviço da representação do absurdismo, do desencanto, que ressoa em nós, provocatoriamente. É um trabalho singular enquanto sugestão da complexidade da rotina da existência humana – presente nas dissecações descritivas do mais trivial dos acontecimentos, como umas meias pousadas num recipiente de plástico, uma refeição preparada, um roer de unhas – e, simultaneamente, enquanto simplificação do ser que vive apenas porque assim parece exigir a sua condição, até se transformar em nada.
As formas de atuar da sociedade circundante, ainda que não tão aprofundadas como o conflito que as mesmas geram no indivíduo, aparecem-nos como momentos valiosos, de rutura. Exemplos disso são a cena de leitura do jornal, onde a clareza da voz se transforma numa mescla inaudível de palavras alienantes, ou as imagens progressivamente mais apocalípticas das faces que compõe a multidão, das ruas da cidade, dos monumentos.
Observamos, aos poucos, o desaparecimento da personagem que nos havia ocupado o olhar, até que submerge totalmente num oceano de abstração do qual também não podemos fugir, prevalecendo, no fim, a paisagem, as ruínas, a cidade vista ao longe, e a conclusão de que a indiferença é indiferente, a sonolência é inútil, a vida é o tempo. Um compêndio de imagens que se assume distante, significante porque concatenado com um profundo, e naturalmente nosso, questionamento do ser – mediado pelas palavras –, e que termina não ambicionando nada para além daquilo que foi, retomando o início, forçando-nos, no entanto, a pensar nessa viagem. Reflete a saturação da razão, até ao ponto em que esta nos parece irracional e, por isso mesmo, constitui uma experiência especial.
Un homme qui dort, de Bernard Queysanne, encontra-se disponível para visualização aqui, com legendas em inglês.