Quando Midnight Cowboy estreia, na primavera de 1969, já os sinos da nova Hollywood tocavam perante a estupefação geral de uma indústria a braços com o novo sentimento cultural e social da era pós-hippie americana. O toque de partida para a zeitgeist emergente havia sido dado pela recepção crítica e popular a Bonnie and Clyde no ano anterior, perante a comoção global das audiências face a uma nova forma de filmar e contar histórias em Hollywood. Ainda assim, o confronto entre auteurismo e industrialismo nunca deixou de estar muito presente não apenas na mente de críticos e público, mas sobretudo na própria indústria.
Porventura não haverá melhor exemplo que a crítica do New York Times a Midnight Cowboy, ostensivamente um filme concebido para desafiar as normas estabelecidas da indústria, a navegar não só a popularidade recente de Dustin Hoffman depois de The Graduate (Mike Nichols), mas também a desafiar os limites das nomas de moralidade, já que o código Hays havia sido abolido apenas no ano anterior. Dizia Vincent Canby na sua crítica que Joe Buck (Jon Voight), o protagonista, representava uma versão do herói sonhador homossexual sob disfarce que populava a literatura sobre os anos 50 na sociedade americana, mas que, em última análise, o impacto social de Midnight Cowboy não passaria da sua capacidade de humanização de uma Nova Iorque insidiosa e noctívaga até então à margem dos holofotes. “Not a movie for the ages”, sentencia Canby.
Mas qual é o legado de Midnight Cowboy, volvidos 55 anos? A sua revisão coloca-o firmemente no plano da recuperação neorrealista na senda das suas inspirações italianas e, particularmente, inglesas, no contexto do movimento das produções da Woodfall na década de 60. O realizador John Schlesinger, era, de resto, um inglês, apostado na criação de um trabalho profundamente americano, na sua colaboração com o argumentista Waldo Salt (banido da indústria durante o pânico moral McCarthyista e que vê em Midnight Cowboy o seu bilhete de regresso a Hollywood) e o produtor Jerome Hellman. Mas Schlesinger é um outsider em diversos níveis: judeu e homossexual, tinha obtido o reconhecimento de Hollywood depois de fazer Darling (1965) girar em torno de uma magnética Julie Christie. A lente de Schlesinger tem aqui uma extraordinária sensibilidade para captar os absurdos e os excessos da cultura americana, desde o homem prostrado e ignorado pela urbe nova iorquina aos omnipresentes e bombásticos outdoors evangélicos na aridez texana.
O compromisso de Schlesinger seria sobretudo o da adaptação de um romance excêntrico de James Leo Herlihy, sobre a amizade entre dois outros outsiders nas franjas da americana contemporânea a procurarem a sua versão do sonho nacional, no contexto dos meandros de uma Nova Iorque de “hustlers” e indesejáveis. Para o director de fotografia, o polaco Adam Holender no seu primeiro trabalho, Schlesinger exigia dos seus actores a sua “pele vestida”: o que são, o que vestem, e o que fazem deveria surgir como segunda natureza.
Esta ideia de realismo sem compromisso faz de Midnight Cowboy, depois de tantos anos, uma peça não necessariamente de temática fácil de apreender. Ainda que a relação entre Voight e Hoffman, Joe Buck e Enrico “Ratso” Rizzo respectivamente, tenha contornos dedicados que vão para lá da simples amizade conjuntural, é difícil dizer que este seja necessariamente um filme sobre homossexualidade, mesmo que latente. Rizzo e Buck são dois homens que, vamos percebendo, se sentem sempre mais confortáveis entre si que na companhia de qualquer elemento do sexo oposto. Com efeito, Midnight Cowboy revela-se na caricata cena em que Buck, depois de chegar do Texas e travar conhecimento com Rizzo, visita o apartamento de um proxeneta evangélico por indicação de Rizzo como forma de o orientar para o negócio. Após o entusiasmo inicial, o proxeneta O’Daniel reconhece em Buck um jovem olhar solitário, mas insta-o a engolir a solidão: “lonesomeness is something you take”, diz O’Daniel.
Na essência de Buck está sobretudo a sua noção de escapismo como forma de adesão ao sonho americano, mas Buck é o “hustler” que é “hustled” na grande cidade. A sua confiança é simultaneamente projectada, um logro, sintomática da sua solidão, e algo que lhe permite abordar estranhos e desarmar as pessoas, ser enganado mas nunca realmente enganar ninguém. Buck é, de resto, o “hustler” inocente, até ao momento em que está em questão a sua relação com Rizzo.
Midnight Cowboy, ao olhar de hoje, é sobretudo um exame devastador da masculinidade moderna. Joe Buck é alguém cuja sexualidade foi formada e está intimamente ligada à vida de cowboy, sob influência da infância passada em casa da avó, uma solteirona que recebia um conjunto de amantes em casa. O seu interesse amoroso, retratado como a rapariga mais promíscua da pequena localidade texana, Crazy Annie (Jennifer Salt, filha de Waldo), representa o seu primeiro contacto com uma verdadeira noção de intimidade sexual, interrompida pela brutalidade da violência sexual. Mas a sua relação com Rizzo, inicialmente de dependência e depois de profunda cumplicidade e familiaridade, mostrada em momentos de genuína ternura entre ambos, como é o caso da cena em que Buck limpa o suor da testa do amigo, doente, antes da sequência de festa, evidencia Buck como o cowboy inseguro, desconfortável consigo mesmo, mas inerentemente afável e bem educado (o verdadeiro “southern gentleman”) em busca de um sentimento de pertença.
Rizzo e Buck estão na procura de dois sonhos americanos profundamente distintos. Rizzo adorna as paredes do seu apartamento massacrado pelo tempo e pela negligência com posters berrantes sobre a Florida: as suas sequências oníricas são pontuadas pela cor e pelo brilho, mas sobretudo pela integração. Rizzo vê-se na Florida não como o inadequado e defeituoso coxo, alienado e imperfeito, mas como a “life of the party”, de fato branco garrido, em animadas conversas, jogos de sorte e azar, com tudo e todos. Já para Buck, a realidade do seu sonho americano está fundada na feliz sequência inicial da viagem de autocarro do Texas para Nova Iorque. Buck deixa para trás uma juventude problemática para se reinventar como escape sexual de senhoras endinheiradas na grande cidade, as suas interacções com os outros passageiros progressivamente mais ruidosas com a aproximação da cidade. Não é, pois, coincidência que tudo acabe com outra viagem de autocarro, desta vez aquela que marca a finalidade do sonho de Buck, resignado apenas a ajudar o companheiro na persecução do seu imaginário, arrumando de vez as botas de cowboy. O final, aberto que está o futuro para Buck, permite ao espectador preencher o vazio com algo mais. O cowboy renegou tudo na sua procura de pertença: a sua terra natal, o seu sonho citadino, até a sua própria imagem. O homem alienado, o homem quebrado, o homem moderno.