Uma Nova Vaga do Cinema Francês

O ano de 2022 ficou marcado pela estreia de vários filmes franceses de qualidade. Un Beau Matin (Mia Hansen-Løve), Les Passagers de la Nuit (Mikhäel Hers), Chronique d’une Liaison Passagère (Emmanuel Mouret), Coma (Bertrand Bonello), Viens Je T’Emmène (Alain Guiraudie) e Bowling Saturne (Patricia Mazuy) são exemplos ilustrativos desta realidade, tendo passado todos pelas salas de cinema nacionais durante o ano transacto em estreia comercial ou festivais de cinema. Se quisermos ir mais longe, podemos também incluir La Maman et la Putain (1973), de Jean Eustache, cuja cópia restaurada foi exibida pela primeira vez em Portugal. Se alargarmos o espectro até 2020, será possível juntar a estes títulos, por exemplo, Le Sel des Larmes (Philippe Garrel), Les Choses qu’on Dit, les Choses Qu’on Fait (Emmanuel Mouret, novamente) ou À L’Abordage (Guillaume Brac).

La Maman et la Putain (1973), de Jean Eustache

Da totalidade dos filmes supramencionados, e retirando Bonello, Mazuy e Guiraudie, enquanto filmes (e realizadores) inclassificáveis, surge um padrão que liga uma determinada nova vaga do cinema francês com a Nouvelle Vague e certos cineastas que, mesmo tendo origem no movimento, o extravasam. Não se pretende estabelecer uma relação transversal e genealógica entre o passado e o presente, mas sim evidenciar correspondências pontuais onde a tradição informa e enriquece a contemporaneidade. 

Assim, mesmo considerando as suas diferenças, é possível encaixar estes realizadores, e respetivos filmes, naquilo que a crítica e cineasta Axelle Ropert apelidou como cinema existencial, descrevendo alguns dos seus traços da seguinte forma: “(…) o afeto errante de um personagem, alguns abraços furtivos, a angústia difusa dos começos de tarde, uma incerteza das esperas parecem designar essa perturbação existencial” ou “(…) uma forma de reserva, voluntária pela recusa da narrativa diretamente autobiográfica, involuntária pois proveniente de uma verdadeira reticência em se expor – por um personagem, um trajeto, uma ficção – permite o surgimento de uma verdade fulgurante (…)”.

Para além das características mencionadas por Ropert é possível, generalizando, elencar uma série de peculiaridades associadas ao cinema francês, nomeadamente ao estilo muito próprio enunciado pela cineasta. Retrato dos amores e desamores da alienada juventude de classe média parisiense, rico em elipses, adultério, liberdade sexual, diálogos extensos com uma certa ligação à literatura e um subtil toque de humor. Esta caracterização poderá parecer estereotipada e redutora, considerando toda a história de um dos mais ricos países no que à 7ª arte diz respeito, mas a verdade é que, a partir desta base, se abrem infinitas possibilidades que permitem estabelecer interessantes paralelismos entre o passado e o presente do cinema francês.

Philippe Garrel, o Amante Constante

Le Sel des Larmes (2020), Philippe Garrel

Talvez ninguém encarne melhor este estereótipo que o cineasta Philippe Garrel e que acaba por ser o baluarte do passado da Nouvelle Vague até à nova vaga contemporânea. É notável a longevidade, assiduidade e consistência que o realizador francês mantém desde os anos 60 até hoje. Nas palavras de Adrian Martin: “Garrel frequentemente filma encontros e despedidas, o olá e o adeus. Os difíceis e melancólicos términos dos romances são equilibrados pelo tremendo elã das primeiras trocas de olhar, das primeiras palavras, dos primeiros contatos. De fato, no cinema de Garrel, o amor é sempre o mesmo, sempre uma repetição e, ainda assim, é sempre algo novo – porque, como cantou Leonard Cohen, “every heart, every heart to love will come but like a refugee”. 13 anos depois do artigo do crítico australiano, Garrel realizou mais 5 filmes, culminando com Le Sel des Larmes, que volta a encaixar-se perfeitamente na descrição de Adrian Martin, constituindo-se como mais uma peça no jogo de repetições e variações da obra do cineasta francês, mais uma vez com um forte carácter autobiográfico presente no ofício partilhado pelas personagens do pai e do filho.

Mia Hansen-Løve, o Primeiro Amor

Un Beau Matin (2022), Mia Hansen-Løve

Se Bergman Island (2021) é, porventura, o filme mais conhecido da cineasta francesa, contando com as presenças de Tim Roth e Vicky Krieps, é Un Amour de Jeunesse (2011) que melhor encapsula o cinema de Hansen-Løve, a sua obra-prima e uma ode ao primeiro amor, protagonizada magistralmente por Lola Créton. Em Un Beau Matin é a prolífica Léa Seydoux que brilha no papel principal. As características autobiográficas citadas por Ropert surgem bem vincadas no novo filme da realizadora francesa, nomeadamente a doença neurodegenerativa de que o pai da protagonista padece, baseado na própria experiência de Mia Hansen-Løve. No filme, a personagem de Seydoux tem de lidar simultaneamente com a filha de 8 anos, a doença do pai e uma relação extraconjugal que inesperadamente surge. O pai é interpretado pelo rohmeriano Pascal Greggory, cujo vigor recordamos de, por exemplo, Pauline à la Plage (1983), e que contrasta acentuadamente com a sua progressiva perda de capacidades físicas e mentais em Un Beau Matin. As imagens de Mia Hansen-Løve transmitem-nos também um conforto que nos relembra Rohmer, pela sua textura ou utilização da cor, comparação que a própria cineasta estabelece noutra dimensão: “Maybe because it’s what I like so much about Rohmer: this feeling that it’s like one home for me. When I go into the films of Rohmer I feel like exploring a new room of that place that he created—for him, and for me too as a spectator.”.

Mikhäel Hers, o Passageiro

Les Passagers de la Nuit (2022), Mikhäel Hers

O último filme de Mikhäel Hers, Les Passagers de la Nuit, revela as suas inspirações e homenagens de forma bastante mais explícita. Passado na Paris dos anos 80, o cineasta vai intercalando as imagens do filme com imagens da época, teletransportando-nos para aquele universo. Numa dessas imagens podemos ver Jacques Rivette no metro de Paris. Por outro lado, os personagens do filme, a determinada altura, decidem ir ao cinema, acabando por ver Les Nuits de la Pleine Noon, de Éric Rohmer. Tal como no filme anterior de Hers, Amanda (2018), o pano de fundo sociopolítico desempenha um papel fundamental. Tal facto permite estabelecer paralelismos entre as duas realidades e medir o impacto de determinado ecossistema nas relações interpessoais e afetivas. A piscadela de olhos aos mestres de outrora está presente também na linguagem cinematográfica do cineasta francês, nas elipses ou na forma como é encenada a vida da família, carregada de momentos narrativamente pouco relevantes, mas profundamente reveladores das dinâmicas entre os personagens. Também a presença de Emmanuelle Béart no filme, protagonista de Jacques Rivette ou Claude Chabrol, nos remete a este sucessivo vai-e-vem entre passado e presente da realidade e da ficção.

Guillaume Brac, o Veraneante

À L’Abordage (2020), Guillaume Brac

À L’abordage (2020) foi o último capítulo do cinema de férias de Verão do cineasta Guillaume Brac, na tradição dos melhores filmes do género, de autoria de Éric Rohmer e Jacques Rozier. Como o próprio admite num artigo da plataforma MUBI “the question of the summer vacation, this time out of time, this parenthesis snatched from daily life, this field of possibilities that opens and closes, has long fascinated me.”. Oscilando entre o documentário e a ficção, Brac faz-se valer das possibilidades de cada um, inclusivamente dentro do mesmo filme como refere, relativamente à sua obra: “The question of language in cinema has always fascinated me. I think that’s why I have always written my films with the music of each actor in mind. It is also for this reason that I like to confront them, in certain scenes, with non-professionals who suddenly burst into fiction with their phrasing, accent and expressions, bringing in chance, the unexpected and life, somehow infecting the actors with their truth.”. À L’abordage é um filme tão leve, bem disposto e divertido que nos leva a desejar habitá-lo, partilhando os espaços e as experiências dos personagens, neste tempo fora do tempo que são as férias de verão e, porque não, os próprios filmes de Guillaume Brac.

Emmanuel Mouret, o Amante Passageiro

Chronique d’une Liaison Passagère (2022), Emmanuel Mouret

O cinema de Emmanuel Mouret é dedicado, fundamentalmente, a relações amorosas. Numa primeira fase da sua carreira, Mouret ocupava frequentemente os dois lados da câmara, enquanto realizador e protagonista. Nos seus filmes mais recentes surge Vincent Macaigne, porventura o ator perfeito para encarnar os seus personagens constrangidos e trapalhões. Chronique d’une Liaison Passagère marca a depuração total do estilo do cineasta marselhês, criando um universo tão fechado, idílico e peculiar para os protagonistas do liaison, que nos remete, em parte, para The Bridges of Madison County (1995), de Clint Eastwood. Mas as referências da história do cinema são tão diversas como Éric Rohmer, Woody Allen, ou até mesmo Ernst Lubitsch, Douglas Sirk ou Billy Wilder, como o próprio reconhece frequentemente em entrevistas. Um cruzamento entre a comédia romântica e o melodrama. Mas não falamos apenas da inserção nos géneros mas da própria encenação. Os planos finais que encerram o filme, dos espaços outrora habitados pelos personagens agora vazios, permitem ainda uma ligação final com a trilogia Before, de Richard Linklater. Mas o que permanece fundamentalmente, depois das luzes se acenderem e rolarem os créditos finais, é o espaço dado aos atores para carregarem o filme emocionalmente e a tensão criada entre a leveza da comédia e a paciência e profundidade dadas no filme a um tema tão importante e transversal da experiência humana como o amor.

Por último, importa referir um cineasta contemporâneo não francês mas cuja grandiosidade e influência não pode ser negligenciada quando falamos de cinema existencial, de encontros e despedidas, de variações e repetições, de traço autobiográfico, de acaso, de triângulos (e quadrados, e pentágonos…) amorosos e de uma dada tradição de comédias românticas e melodramas. Falo, naturalmente, do sul-coreano Hong Sang-soo. 

On the Beach at Night Alone (2017), Hong Sang-soo

Certamente que muitos outros cineastas franceses poderiam estar incluídos nestas linhas, seja pela sua qualidade seja pela sua possível compartimentação no estilo de cinema retratado. No entanto, foi a visualização dos filmes mais recentes de Garrel, Hansen-Løve, Hers, Brac e Mouret que permitiram estabelecer estas associações com a história do cinema francês, sublinhando a frescura com que estes cineastas reencenam o passado na contemporaneidade, atualizando-o e emprestando o seu cunho pessoal, leitura e sensibilidade.

Bruno Victorino