Halloween Ends é por definição uma impossibilidade lógica. Significando uma festividade anual, a palavra “Halloween” sugere uma temporalidade cíclica, indiferente à narrativa da vida humana, que se incompatibiliza necessariamente com qualquer ideia de “fim”. É verdade que o Halloween torna explícito, temático e sexy, o movimento-para-a-morte que nas formas actuais das festividades cristãs (o Natal, o Carnaval) parece já só existir subterraneamente. Em todo o caso, não se pode confundir esta morte com um “fim” entendido como ponto terminal de uma linha recta. A morte que se celebra no Halloween é a dos mortos-vivos e a de Michael Myers, uma morte que não se pode matar. Antes de ver o filme, já o estranho.
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Na fila para a bilheteira, eu e o meu amigo temos à nossa frente um grupo de rapazes e raparigas que falam muito alto e não parecem acreditar em Deus ou na “magia do cinema”. Estando eles em grupo, são apenas capazes de chamar uns pelos outros e de falar sobre coisas que lhes estão a acontecer nesse exacto momento; provavelmente não nos entenderiam se fizéssemos apelo a conceitos abstractos tais como “civismo”, “respeito pelo próximo” ou “a magia do cinema”. Perguntamos à senhora da bilheteira se eles vão ver o filme Halloween Ends (2022) e ela confirma-nos, entre suspiros, que sim, mas promete que irá à sala mandá-los calar caso façam demasiado barulho. Nós agradecemos, sorrimos e recuamos sem comprar bilhetes – se um dia todos dissessem a verdade, a economia colapsava. Vamos ao Google procurar outras sessões do filme nas redondezas. Descobrimos uma não muito longe dali, a começar dentro em breve, e desatamos a correr. No metro, o meu amigo diz-me que, apesar de tudo, é reconfortante ver que as gerações mais novas ainda encaram o cinema de terror como um “interdito”, como algo perigoso.
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Antes de Halloween Ends começar, assistimos a pelo menos dois trailers de filmes de super-heróis. Não consigo ver para além dos fatos escuros e das expressões de ódio, luto e rancor que atravessam os rostos de todas as personagens.
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A sequência inicial de Halloween Ends é inesperadamente hitchcockiana e eficaz, mas não deixa dúvidas sobre as suas intenções. Regressa ao pecado original do filme de John Carpenter (1978) para inverter os seus termos – desta vez o babysitter é o homicida, não a vítima – e, sobretudo, para o esvaziar de tudo o que nele pudesse ser “impartilhável”, isto é, tudo o que nele pudesse adiar o comentário e sugerir (ao invés de desenterrar) níveis hermenêuticos profundos. Como quase todos os blockbusters da actualidade, as novas iterações da saga Halloween são filmes que pedem sessões “com debate”. Mas mesmo tendo a verborreia exegética em vista, Halloween Ends não parece interessar-se pelo ressentimento (contra a sexualidade feminina?, contra a exuberância do sonho americano?) que pôs a máquina Michael Myers a funcionar no final da década de 70, talvez por este ser em grande medida inconfessável. Os temas deste filme são antes os da bastante pública e “actual” luta pela certeza moral. O debate é o das redes sociais, cujo discurso é plenamente integrado no filme, ainda que superficialmente “denunciado” pela narrativa. Por isso, nesta sequência inicial não temos uma primeira matança inequívoca, uma investida do Mal absoluto como a que abria Halloween (1978), mas antes um acontecimento mediático que cria acusadores e culpados. É uma introdução eficaz na medida em que não dispensa ainda, por completo, uma cinética do medo. Mas o resto do filme já não precisará de fingir ser “de terror”: daí para a frente esperam-nos apenas os labirintos retóricos do post ou do artigo de opinião. Quando, duas ou três cenas depois, vejo a heroína Laurie Strode martelar no seu computador frases sobre o “mal” que “traumatizou” a sua “comunidade”, lembro-me de que por vezes tenho sonhos em que existo como uma espécie de substância desincorporada, como um espectro a assombrar uma janela de chat ou um feed do Facebook.
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Os créditos iniciais, com a banda-sonora clássica de Carpenter devidamente aproveitada, som e imagem em absoluta concordância, são o que guardo de Halloween Kills e Halloween Ends. Enquanto passam, faço um sinal de aprovação com a mão direita – polegar para cima. O meu amigo repara e faz o mesmo.
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Halloween Ends está destinado a ser um objecto “polarizante”, porque nele não se distingue com clareza onde fica o lugar do fã. Sabemos que qualquer filme que pertence a uma saga deve prever o lugar do fã, integrá-lo na narrativa e no olhar da câmara sobre as personagens. Nada do que acontece pode perturbar a familiaridade adquirida através do visionamento compulsivo dos 12 filmes que vieram antes. A novidade e o simulacro da novidade devem ser doseados e injectados em pontos estratégicos: um fã quer mais do mesmo, mas não se quer sentir estúpido por querer mais do mesmo. Halloween Ends não cumpre este requisito, na medida em que se excede na sua aparente novidade. Grande parte do enredo – de um filme que alegadamente conclui uma trilogia – está desligada de tudo o que veio antes: é dedicada a uma “história de amor” entre dois jovens “párias” que poderia decorrer, por exemplo, no Natal (enfatizando assim a proposição moral da “necessidade de perdoar”), e que é desnecessariamente complicada pela mecânica do slasher (que obriga à agressão ritual do espectador com sons estridentes). Pelo caminho, o fã perdeu o lugar onde se sentar e aplaudir. Halloween Ends será interessante, aliás, enquanto filme condenado a uma existência esbracejante, refém de si próprio – do seu título, da sua sinopse, das suas personagens, dos seus trailers, dos seus cartazes promocionais, dos seus fãs. Estão lá todos os marcadores da “saga” e do “cinema de género”, mas persistem como detritos ou memórias encriptadas, dispersos em torno do debate social e moral (?) que se afirma como a verdadeira razão de ser deste filme.
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Michael Myers aparece tarde no filme, e não parece ele, parece um velhinho. O mesmo filme que tanto se esforça para o tornar universal, para o “alegorizar”, recorre – quando para fins de “terror” precisa que ele seja um monstro concreto – a uma caracterização sem imaginação ou curiosidade. Por detrás da máscara de Michael Myers está apenas um velhinho muito débil e feio. Isto rima talvez com os esgares e certos movimentos súbitos, quase reptilianos, de Laurie Strode, ela própria na terceira idade. Halloween Ends é também um filme sobre o medo que temos dos nossos idosos, e da velhice que não traz sabedoria nem amor, apenas sobrevivência.
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A insistência da narrativa em diagnosticar, sinalizar e “produzir discurso” sobre a ruína moral de um dos protagonistas, faz-me pensar, por contraste, no livro sério e horrivelmente verídico de Emmanuel Carrère, O Adversário (2000). Aí também num homem aparentemente comum se descobre um assassino monstruoso, mas está montada em torno dele uma intriga de silêncio – por mais estranho que se torne o seu comportamento, nem os familiares nem os amigos mais próximos parecem aperceber-se do que lhe está a acontecer; um homem afunda-se na sua insignificância até se tornar ele próprio num buraco negro. Filmes do estilo Halloween Ends existem para nos distrairmos de possibilidades como essa.
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No fim, o marketing de Halloween Ends leva a melhor sobre as boas intenções dos – de acordo com a Wikipédia – quatro guionistas. Tanto a história de amor em tempos de cancel culture como a tese sociológica sobre o “contágio” do mal são atiradas pela janela fora do veículo narrativo, já em rota de colisão contra a boa vontade dos poucos fãs que ainda não tiraram o telemóvel do bolso para atribuir “2 estrelas” a Halloween Ends (2022) no Letterboxd, ou para o incluir num dos últimos lugares de uma lista pessoal intitulada “Halloween Saga Ranked” ou simplesmente “Halloween Ranked”. Como foi prometido nos pequenos teasers que apareceram, semanas antes da estreia do filme, nos feeds de todos os utilizadores de Instagram ligados aos atractores publicitários “Cinema”, “Cultura” e “Cinema de Terror”, Laurie e Michael são finalmente lançados para a arena, fazem o seu número de duas feras de circo e desaparecem antes que se criem condições diegéticas para que haja uma nova sequela num futuro imediato. Só talvez em 2032 é que Michael Myers e uma Laurie Strode digitalmente recriada terão a oportunidade de se defrontar mais uma vez, agora ao serviço dos grandes “temas” dessa década, que esperamos que não sejam os da catástrofe ambiental.
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Estranhamente, a justiça popular que fora denunciada em Halloween Kills (2021) é reabilitada no desfecho deste filme, quando na vila de Haddonfield se conduz uma procissão que culmina na matança de Michael Myers. Desta vez, a grande massa humana é dignificada enquanto desmembra o bode expiatório. O superego comunitário sai desta crise reforçado e purificado. Algures, um indivíduo licenciado em Artes ou Humanidades interpretará esta mudança de rumo entre sequelas como uma reacção à invasão da Ucrânia. No que se refere à cronologia da produção de Halloween Ends (que foi anunciado logo em 2019), é uma hipótese pouco plausível. Mas também não ganhamos nada em refutá-la.
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O meu amigo, versado na saga (já eu só vi sensivelmente 4 dos 13 filmes), gostou de Halloween Ends, ou pelo menos achou-o melhor que o anterior, Halloween Kills. Mas ambos preferimos o óptimo Scream (2022), que se passa num mundo onde a Internet já adquiriu um significado narrativo, mais do que simplesmente “temático”, e onde não há monólogos em voz off sobre a persistência do “trauma”. Mais tarde nessa noite, eu digo-lhe, num tom que me parece 75% irónico, que vou escrever um texto intitulado “Halloween Ends Ending Explained”. Ele envia-me um excerto de uma cena maravilhosa de Halloween 4: The Return of Michael Myers (1998), onde Michael Myers conduz uma carrinha vermelha e causa explosões numa estação de serviço. Entre os vídeos sugeridos que aparecem junto a este, vejo um com o título “Jeffrey Dahmer Serial Killer confronta parentes das vítimas legendado”. Se Michael Myers é símbolo de alguma coisa, não será certamente do Mal, mas do próprio cinema, a cravar a sua faca no corpo do real.