Um Filme Minecraft: Estamos todos presos na montanha-russa

Na estreia de The Studio, série/sátira da autoria da dupla Seth Rogen-Evan Goldberg sobre o estado de apoplexia da Hollywood contemporânea, a tensão dramática do primeiro episódio gira em torno de uma ideia peregrina: quando a personagem de Rogen, um anafado produtor executivo, é promovido a chefe de um histórico mas decadente estúdio, é incumbido, pelo homem que assina os cheques, da missão de trazer para o grande ecrã o próximo grande franchise… em torno de Kool-Aid Man, mascote de uma marca americana de sumos em pó. “Se o filme da Barbie fez mil milhões de dólares, este vai fazer dois mil milhões!” verborreia o dono do estúdio. Contra factos não há argumentos.

A ideia é obviamente absurda. Kool-Aid Man não tem história. Não tem personagens. É uma “propriedade intelectual” vazia de qualquer mensagem ou significado. É um produto, uma unidade de valor capitalista que, fazendo-se valer de uma roupagem simpática e apelativa para os mais novos, chega, na série, aos ouvidos de magnatas insensíveis a tudo o que não seja o lucro boçal, o enriquecimento a curto-prazo, sem pensar nas consequências destrutivas desta mentalidade para a indústria que dizem querer preservar. Algo que, enfim, só podia existir num projeto como The Studio, que como todos os bons exemplos do género, leva os seus conceitos ao cúmulo do ridículo, humorizando na segurança de saber que tal jamais seria possível no mundo real.

 

*

 

Minecraft (o jogo) não tem história. Não tem personagens. É uma “propriedade intelectual” vazia de qualquer mensagem ou significado. É um produto, uma unidade de valor capitalista que, fazendo-se valer de uma roupagem simpática e apelativa para os mais novos, chegou aos ouvidos de magnatas insensíveis a tudo o que não seja o lucro boçal, o enriquecimento a curto-prazo, sem pensar nas consequências destrutivas desta mentalidade para a indústria que dizem querer preservar – e infelizmente a repetição acaba aqui, porque, se o mundo contemporâneo nos habitou a alguma coisa, é ao facto de a vida real muitas vezes superar a própria ficção.

Também Um Filme Minecraft não é bem um filme. Tem, na verdade, mais em comum com uma experiência social, um evento de massas que faz confluir vários fatores — uma base pré-instalada de 350 milhões de espectadores/consumidores, que fizeram do jogo o mais vendido da história daquela indústria; um fenómeno de memes, com milhares de vídeos nas redes sociais a alcançarem o tão cobiçado estatuto de “v i r a l i d a d e”, à boleia de comportamentos selvagens nas salas de cinema que fazem os comuns tagarelas de telemóvel parecer autênticos monges budistas; finalmente, é um salto de fé para a indústria norte-americana, que há quase duas décadas colocou todos os seus ovos no cesto dos super-heróis e que, com o esvaziar da “bolha Marvel” e o crescente apego do público ao streaming (e desinteresse pela experiência em sala), procura desesperadamente um substituto que assegure a sobrevivência da indústria (e, deus nos livre, não obrigue ninguém a ter uma ideia original).

O exercício, há que dizê-lo, não é um desastre completo. É mau, naturalmente, mas está em linha com outros maus blockbusters recentes que saem de Hollywood. No papel principal, Jack Black interpreta Jack Black, que é como dizer uma bola de energia irritante, um homem de meia-idade que recusa crescer ou evoluir e passa o tempo todo aos gritos ou a inventar canções ridículas. Jason Momoa sai-se pouco melhor, com o seu “Homem do Lixo” a arrancar um sorriso de vez em quando, mas nunca passando de um registo rebuscado, menos de cinema e mais de sketch comedy, para o qual também contribuem os péssimos efeitos visuais e uma narrativa (propositadamente?) sem ponta por onde pegar.

 

 

De resto, acaba por ser o registo semi-irreverente e algo self-aware da comédia a única coisa que previne o filme de ser uma catástrofe. É sempre um prazer ver Jennifer Coolidge, nem que seja por alguns minutos, e uma vez ou outra lá vem ao de cima a sensibilidade bizarra e deadpan de Jared Hess, realizador a anos-luz do clássico de culto Napoleon Dynamite (2004). Há também referências a rodos, easter eggs e piadas subtis para os fãs do jogo — enfim, toda a panóplia de engenhos da escola da “ironia geek” de Joss Whedon, onde tudo é uma piada e a quarta parede não existe.

No imediato, a fórmula parece ter resultado. O filme estreou acima das melhores previsões dos especialistas de box-office, tornando-se num dos mais bem-sucedidos títulos de sempre da Warner Bros., em números brutos. Até ao momento, já faturou perto de 600 milhões de dólares, e tudo aponta para que, mais semana, menos semana, quebre a barreira dos mil milhões, tornando-se apenas na sétima produção desde a pandemia a conseguir tal cifra. O sucesso de Minecraft — e de outro “billion dollar film”, a “adaptação” de Super Mario Bros. — deixa no ar a ameaça de uma avalanche de futuras adaptações de videojogos, que durante décadas foram o parente pobre do mundo das adaptações para cinema e estão por isso hoje repletos de potencial comercial.

Dirão alguns, como já disseram (até, imagine-se, Sean Baker), que este fenómeno é positivo. Que dá às salas um impulso de que estas precisavam como de pão para a boca, que é bom ver os cinemas cheios para a partilha de uma experiência em comunidade, mesmo que esta seja em torno de Um Filme Minecraft. Os mais otimistas (para não dizer iludidos) têm até argumentado que o sucesso do filme poderá introduzir uma nova geração à magia da experiência em sala e formar novos públicos — uma espécie de trickle-down economics para o cinema de autor.

Não sou insensível a nenhum destes argumentos. É verdade que o estado da indústria atual depende destes filmes para a sua sobrevivência, e que sem o sucesso de um Minecraft não seria possível, por exemplo, ter o novo de Paul Thomas Anderson, também ele financiado pela Warner Bros. Também não posso mentir e dizer que não foi agradável ver uma sala cheia de crianças claramente a divertirem-se com as patetadas de Jack Black, uma figura que me acompanhou na minha própria infância. Mas depois penso nos filmes que me eram dados a ver com estas idades. Nos grandes clássicos da Disney, da Pixar, da Ghibli, ao mesmo tempo entretenimento de excelência e obras de arte que ainda hoje comovem. Pergunto: será que Um Filme Minecraft é o futuro que queremos?

Terminando como se começou: não deixa de ser curioso que em The Studio, quando se vê confrontado com o abismo de produzir Kool Aid – O Filme, Seth Rogen tire um coelho da cartola — nem mais nem menos do que Martin Scorsese, que numa deliciosa auto-paródia aceita a encomenda, mas apenas se a puder tornar num grande épico americano sobre o massacre de Jonestown. O mesmo Martin Scorsese assinou, em 2019, um polémico editorial na Harper’s Magazine onde, a pretexto de uma dedicatória a Fellini, soava os alarmes contra aquilo que dizia ser a ameaça que o “cinema” enfrentava face ao entretenimento de “montanha-russa”, dos super-heróis, do streaming e dos algoritmos. O mesmo Scorsese, na altura, preparava-se para estrear O Irlandês, o seu derradeiro épico de gangsters, na Netflix; em 2025, surge numa produção da Apple, enlutado por uma indústria que já não é o que era. Quanto a nós, continuamos por aqui, agora com chicken-jockeys e memes do Tiktok. Definitivamente, a montanha-russa já viu melhores dias.

 

 

André Filipe Antunes