Foi ainda em Maio que foi anunciado o Tribeca Lisboa, com o seu fabuloso preço de 130 euros para dois dias de festival. Conceituado festival internacional de cinema sediado em Nova Iorque, fundado por Robert De Niro e Jane Rosenthal, esta parecia a “oportunidade” de Portugal ter um festival de cinema de uma dimensão verdadeiramente grandiosa, recheado de estreias internacionais e estrelas da indústria. Pelo menos assim o permitia adivinhar o tal preço de 130 euros, um valor absolutamente pornográfico e fora da realidade portuguesa, quando estamos habituados a ir ao MOTELX, Doclisboa, LEFFEST ou Indielisboa e pagar cerca de 5/8 euros por sessão. Talvez seja por isso que não vimos por lá nenhuma cara conhecida desses outros eventos de cinema em Portugal.
Levado pela emoção de um assíduo frequentador de festivais de cinema rapidamente garanti o meu bilhete. Sim, garanti, porque o Tribeca Lisboa não vende bilhetes: garante-os. Tal é a excitante palavra utilizada no seu site, que, depois de melhor explorado, parece estar recheado de uma linguagem que pouco tem a ver com cinema: CEOs, festa da cultura pop e entretenimento, talks, podcasts, enfim, dê-se o benefício da dúvida.
Os meses foram passando e pouco mais se sabia além de que Robert De Niro estaria presente. Nas vésperas do festival finalmente o tão aguardado programa. 7 filmes, sim leram bem, 7 filmes internacionais, entre eles o muito aguardado vencedor da Palma de Ouro em Cannes: Anora, de Sean Baker, a passar em simultâneo com outros tantos filmes portugueses noutra sala, além de outros eventos, nomeadamente as tais “talks” no “palco principal”. As expectativas ficaram definitivamente quebradas quando foram divulgados os horários: Anora às 10h da manhã de uma sexta feira, dia de trabalho, com o último filme a começar perto das 18h. O local: HUB recreativo do Beato Innovation District ou lá o que quer que seja que agora chamem a este novo espaço em Marvila que parece estar tão na moda. Transportes para lá chegar? Mais vale chamar um Uber.
Acompanhado pela Rita Cadima de Oliveira, autora das fotografias que acompanham este artigo, fomos então ver Anora pela fresca e deparamo-nos com condições absolutamente vergonhosas. Um antigo pavilhão industrial, com as janelas devidamente tapadas para evitar a entrada de luz, um minúsculo projector, e vulgares cadeiras de cozinha low cost a serem colocadas em improviso à medida que os espectadores chegavam à sala, todas ao mesmo nível. Foi provavelmente a pior experiência de cinema de todos os tempos num vergonhoso festival que a pretende celebrar. O espaço para as pernas e braços era inexistente perante a forma como as pessoas eram empacotadas, as legendas impossíveis de ver devido a todas as cabeças que se prolongavam umas à frente das outras tapando o ecrã, que à distância a que a maioria estava dele mais não era que o mesmo que estar a ver o vencedor de Cannes num telemóvel. Telemóveis esses que teimavam a ser consultados pelos presentes, por entre buzinas do trânsito lá fora, rádios dos seguranças que recebiam ruídos imperceptíveis e staff que por lá andava para trás e para a frente. Ver o filme? Não parecia ser importante.
Rapidamente saímos para “conseguir apanhar” a TALK protagonizada por De Niro e Jane Rosenthal sobre os benefícios do Tribeca: uma espécie de brainwash onde se veio a confirmar que De Niro, um dos melhores actores da história do cinema (para muitos até o melhor), é um péssimo comunicador, e parece estar mais obcecado em falar sobre Trump do que sobre cinema. Francisco Pedro Balsemão, inchado, disparava perguntas banais e inconsequentes numa conferência que durou uns fantásticos 35 minutos, após 25 de atraso. Mas antes, a experiência: uma interminável fila que ocupava grande parte do recinto para entrar nesta enorme tenda. Durante esse tempo fomos falando com várias pessoas que ali estavam e foi aí que nos apercebemos que, à nossa excepção, ninguém havia pago bilhete para ali estar. “Vim pela minha empresa”; “Arranjaram-me bilhete”; “Trabalho na SIC”; “Tenho um canal de tiktok”. O Tribeca Lisboa trata-se afinal de um evento organizado pelo grupo Impresa para promover a plataforma OPTO, o streaming da SIC, que de alguma forma conseguiu a presença de De Niro, que parece estar curto de finanças, e a sua marca Tribeca, que emprestou meia dúzia de filmes para serem exibidos com piores condições que no ginásio de um comum acampamento de férias.
Este festival de cinema é afinal de contas uma espécie de Websummit meets Moda Lisboa meets gala SIC/CARAS meets Globos de Ouro onde o cinema parece ser apenas um detalhe. As nossas pequenas vedetas da televisão: actores, influencers, jornalistas, passeavam-se pelo recinto, procurando desesperadamente passar uma imagem de glamour rasca de uma Hollywoodzinha à portuguesa, mostrando-se uns aos outros, e aos desgraçados excepcionais que terão efectivamente gasto dinheiro para assistir a esta m…eritocracia. A dada altura passaram a correr seguranças de fato e gravata e óculos de sol, “como nos filmes”, gritando às pessoas ENCOSTEM-SE! Afinal de contas vinha aí De Niro, Whoopi Goldberg, e umas quantas estrelas da SIC nos seus carrinhos de golf para o backstage. Afinal de contas as pessoas importantes não precisam de andar a pé. A experiência foi tão traumática que decidimos abandonar por volta das 14h.
Ainda assim, regressamos para o segundo dia, sábado. Para ver cinema naquelas condições mais vale não ver e aguardar por uma eventual estreia em sala ou streaming, portanto abdicamos da maior parte do programa e decidimos ver apenas Ezra, às 14h, e a seguir a principal TALK (a palavra é fantástica) do festival novamente com De Niro e Jane Rosenthal. Sabíamos que Ezra iria encher, porque no final haveria também sessão de perguntas e resposta com De Niro, um dos protagonistas, e por isso teríamos que ir cedo, porque nem 130 euros garantem ao espectador pagante a honrosa generosidade de poder assistir aos… filmes, devido à curtíssima lotação daquela espelunca onde os exibem. Com 40 minutos de antecedência a fila para Ezra já vinha para o exterior, e a seguir a nós prolongou-se pelo perímetro interno do festival, com centenas e centenas de pessoas a aguardar para entrar na minúscula sala e assistir ao filme nas suas cadeirinhas de picnic. A dada altura aproxima-se uma voluntária: “queria informar que está neste momento a decorrer um filme lá dentro e quem está lá dentro pode querer ficar para este, pelo que não garantimos lugar para todas as pessoas. Estamos a avisar para que depois não existam mal-entendidos.”. Fabuloso, não é? Toda a gente sabe que nos festivais de cinema as pessoas podem abancar dentro das salas e ver toda a programação de seguida. Porque não?
O que se seguiu foi talvez a maior violação que a Sétima Arte alguma vez sofreu em Portugal: Pessoas amontoavam-se nas cadeirinhas, naturalmente insuficientes, mas a produção, de um amadorismo atroz, decidiu deixar continuar a entrar pessoas. Os espectadores acumulavam-se de pé nas laterais, atrás das cadeiras, entre os pilares do pavilhão e as plantas que ornamentavam o espaço. E foi assim que decorreu a exibição. A meio do filme uma senhora sentada precisou de ir à casa de banho. Quando estava a regressar ao seu lugar foi impedida pelo segurança, que tinha “instruções para não deixar passar mais ninguém”. Responsáveis? Não existiam. A senhora assistiu ao restante de pé, entre as cabeças e os pilares. No final finalmente as perguntas a De Niro. Um cameraman rapidamente materializou-se empurrando e insultando as pessoas à sua frente para que o deixassem passar. “Vocês não podem estar aqui!”, gritava, ao mesmo tempo que discutia e insultava outra senhora que tinha praticamente atropelado. Dizem que De Niro estava lá à frente, sentado por baixo das já ilegíveis legendas da pequena tela. Foi impossível vê-lo. Perguntas? 5 ou 6 de carácter geral feitas pelo moderador. O público? Não tem direito. Afinal de contas a seguir havia uma TALK e o tempo era curto.
Enduring Excellence in Hollywood: Crafting Stories That Stand the Test of Time in an Ever-Changing Society. O que quer que isto signifique, foi este o pomposo nome dado à conversa cabeça de cartaz, com De Niro, Jane Rosenthal e moderação de Bernardo Ferrão, da SIC, claro. Primeiro o absurdo de falar sobre Hollywood, uma realidade que nada tem a ver com o cinema português ou os nossos profissionais, uma vez que afinal de contas este “evento” se revelou uma festa de networking empresarial exclusiva a convidados. A dada altura Ferrão perguntou a De Niro se alguma vez tinha visto um filme português. O actor respondeu que não, rindo-se de forma embaraçosa. Jane a mesma coisa. Porque raio estão eles aqui nestas condições? Depois de algumas banalidades sobre cinema, Ferrão adiciona o clickbait e pergunta a De Niro sobre Trump, transformando a conferência num comício democrata (mas o que é que nós temos a ver com isso?!). Alguns aplausos iam dando corda a De Niro, visivelmente distraído, bem como a Ferrão, jornalista político que tinha encontrado a sua zona de conforto. O público começou a abandonar a sala, cansado da mesma lengalenga de sempre de uma classe privilegiada e hipócrita que vê os problemas da sociedade através de binóculos. Às tantas um espectador grita TALK ABOUT CINEMA! Afinal de contas foi para isso que, pelo menos alguns, foram ao Tribeca. De Niro e Ferrão, embaraçados, concordam, mas rapidamente voltam a cair no vórtex de Trump, perante os apupos de um público cansado que gritava “buuu”! A conferência duraria pouco mais, terminando de forma amarga, sendo que havia começado pela notícia de última hora, anunciada em palco por Carlos Moedas e Francisco Pedro Balsemão: falaram com De Niro e Rosenthal e estavam em condições de confirmar que o festival regressará em 2025. Alguém o tinha pedido?
Nos media portugueses, nada do que se passou realmente no Tribeca foi mostrado ao grande público. Painéis de conversas com pessoas que pouco tinham a ver com cinema. O que foi por exemplo Dino Santiago fazer ao Tribeca para falar de temáticas de igualdade social, para depois andar a exibir fotografias suas nas redes sociais enquanto era transportado de carrinho de golf como uma estrela pelo meio da plebe, escrevendo a legenda “Look at us today! We made it!” – citando Whoopi Goldberg. Filmes exibidos em condições ofensivas e abaixo de cão, com público apertado em pé espreitando por entre as cabeças dos mais altos, ao mesmo tempo que Jane Rosenthal elogia a experiência de ver o cinema em sala no grande ecrã. Talks dedicadas a temáticas sociais com bilhetes a 130 euros, com um público que está na sua esmagadora maioria presente mediante convite. Um evento organizado pelo grupo Impresa, detentor de nomes de responsabilidade como a SIC, o Expresso ou a Blitz, ao qual foi encostado o nome de um conceituado festival de renome internacional para autopromoção, tudo com a conivência de uma infantil Câmara Municipal que se deixa seduzir pelos encantos de uma projecção de Lisboa além fronteiras, e em colisão directa com o Doclisboa, uma instituição do cinema na capital, que esteve e está a decorrer em simultâneo na cidade. Um recinto recheado de marcas que nos invadem os olhos por onde quer que nos viremos. Por entre burburinhos e conversas mais recatadas a opinião era geral: o que se passou foi uma vergonha. É caso para dizer: que raio de merda é esta?! O Tribeca Lisboa foi não só o pior festival de cinema, como o pior evento que já tive a infelicidade de frequentar. Pela módica quantia de 130 euros.