Na filmografia de M. Night Shyamalan podemos distinguir dois períodos estilísticos principais, intercalados por um outro conjunto de filmes, de transição, menos coeso. Primeiro, o tempo das grandes fábulas fantásticas a uma escala familiar – filmes de fé e filmes de morte, filmes sobre o oculto e sobre o mundo terreno que o engloba. E após uma fase de experimentação, mais solta, no seguimento do insucesso comercial e crítico do belíssimo Lady In The Water – onde encontramos o estranho The Last Airbender e o injustamente desprezado After Earth –, um segundo período, mais precisamente a partir de Glass (2019). Shyamalan enveredou por um cinema “de simulação”, de pequenas representações teatrais, hitchcockianas, onde o realizador é marionetista, que dispõe e desfruta das suas personagens em torno de pequenos jogos perigosos, mais ou menos específicos, de cinema – Old sendo aqui, é evidente, o exemplo perfeito. Shyamalan terá atingido, plenamente, a fase mais puramente conceptual do seu trabalho.
Com Knock at the Cabin de 2023, esse seu estilo tardio parece ter sofrido novo, ainda que ligeiro, desvio, que se reflete também no mais recente Trap. Os dois últimos filmes de Shyamalan, embora terrivelmente distintos entre si, parecem encontrar-se na mesma recusa da ideia corrente dos seus primeiros sucessos, que o identificava como mestre da “reviravolta final” do enredo (vulgo plot twist). Ambos funcionam como ensaios em torno da projeção do espectador numa obra, a sua expectativa e entrega, e da resposta assumida pelo objeto em si. O espectador é então confrontado com uma imagem/informação clara (poderíamos dizer precisa), e ser-lhe-á proposto tratar ou “ver” essa imagem de uma forma que sabemos, inevitavelmente, comprometida. Tratam-se de dois filmes singulares sobre crença, mas de uma forma distinta daquela que enchia a tela em Signs. Obras abstractas em torno do que assumimos nós a partir das imagens de um filme – será o seu “real” algo em que simplesmente queremos acreditar?
Um cruel divertissement, Trap será, definitivamente, um filme sobre (ou sob) o efeito de uma imagem. Como em Knock at the Cabin, não recorre a estratagemas e astúcias narrativas mais ambíguas, porque, concretamente, não existe em Trap um “desfoque”, uma cortina de fumo, que impeça ao espectador de compreender com clareza, e desde os primeiros instantes do filme, as bases da história que é encenada. Um concerto pop, uma grande operação policial, e, ao centro, um homem que sabemos ser o assassino procurado. Shyamalan desenvolve, porém, o seu filme a partir de um interessante filtro à percepção do espectador. Josh Hartnett interpreta o criminoso – Cooper Adams, assassino, carinhosamente apelidado pela imprensa de “The Butcher”. A cara bonita do cinema americano dos early-00s será, determinadamente aqui, a figura que preenche o primeiro plano de todo o filme. Seguimo-lo enquanto desfruta de um concerto de Lady Raven (Saleka Shyamalan) com a sua filha de 12 anos, Riley (Ariel Donoghue), e acompanhamo-lo enquanto procura escapar à fantástica armadilha que lhe foi preparada pela polícia.
Shyamalan parece recorrer a De Palma (a outra influência que assombra o seu Trap – que evoca nomeadamente Snake Eyes) de uma forma peculiarmente subversiva. O recorrente complot onde De Palma faz cair os seus protagonistas, será aqui invertido de um ponto de vista moral. Esse complot existe, claro – a titular “trap”, num dos mais inteligentes recursos de Shyamalan a uma informação clara que o espectador não estará pronto para aceitar. Mas o elemento agressor é aqui o (nosso) protagonista encurralado. O filme estabelece um jogo constante entre a moral de uma narrativa, e a necessária projeção do espectador sobre as imagens do filme. Dado o artifício posto em prática pelo realizador, Trap será o filme onde nos vemos torcer inevitavelmente pelo vilão, apesar deste nos ser claramente apresentado como tal. Pai de família dedicado e atencioso, Cooper/Hartnett não se trata de um “simples” ladrão ou criminoso, mas de alguém que rapta e corta pessoas aos pedaços. O espectador é informado desses crimes, e de um outro ainda em curso. Mas Shyamalan obstrui todas essas informações/imagens potencialmente mais concretas, pela imagem romântica do rosto de Hartnett. Invertido, o jogo de Trap é-nos exposto desde os seus primeiros instantes e, ao invés da narrativa, será aqui o seu inteligente dispositivo cinematográfico o verdadeiro motor dos “olhos” do espectador. Shyamalan conta-nos efectivamente (quase) tudo, e deixa-nos a esperar que a trama (ou o cinema?) nos salve, refutando tudo aquilo que já sabemos ser verdade.
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“The art of creating suspense is also the art of involving the audience, so that the viewer is actually a participant in the film.” Alfred Hitchcock, in Hitchcock/Truffaut de François Truffaut
Trap revolve insistentemente em torno de uma construção hitchcockiana onde o espectador dispõe de mais informação do que as personagens que se encontram em cena. No entanto, Hartnett é simplesmente demasiado ideal de um ponto de vista estético (e por isso ético) para que o espectador se possa posicionar contra ele. Um vilão inconveniente, um Lecter in sheep’s clothing – Hartnett enquanto o contrário de um Richard Jewell, por exemplo. Trap estará, portanto, “ao contrário” no que respeita à nossa percepção da “verdade” de uma história. Sem jamais nos preparar para uma redentora ou esmagadora surpresa final – até porque, essa dita revelação final, sê-lo-á verdadeiramente? – o realizador experimenta um discurso aprofundado sobre o poder das imagens na nossa leitura do mundo. Da mesma forma que Cooper observa os espectadores do concerto que, em seu torno, colocam um telemóvel ou “a imagem do telemóvel”, entre os seus olhos e o espetáculo a que supostamente assistem, o espectador do filme “decide”, ou pelo menos assim o espera Shyamalan (a nosso ver, bem), colocar a imagem do bombeiro Hartnett, esse all-american guy, defronte da mais previsível leitura moral dos eventos. De relembrar, ainda no começo do filme, a cena em que, pouco depois de chegarem à sala do concerto, Cooper filma a sua filha enquanto esta imita uma dança de Lady Raven. Cooper filma a dança e, entretanto, filma o videoclipe que a filha imita, sobre um televisor ao seu lado. Em Trap, a própria realidade (do filme) será sempre a representação de uma construção conceptual. Cooper ao centro de uma família nuclear perfeita, ou a projeção do desejo e ambição de Riley numa Lady Raven afinal apavorada.
Conduzindo toda a operação policial em segundo plano, Dr Josephine Grant, profiler com o penteado de Carlotta (Vertigo, Alfred Hitchcock), é interpretada por Hayley Mills. Uma escolha curiosa de casting, Mills foi child star, e nomeadamente a protagonista de The Parent Trap (1961) – e é também entre pais e filhos que revolve este filme. É indiscutível que Shyamalan atravessa uma fase algo nepotista quando, depois de financiar o filme de Ishana (o péssimo The Watchers), decide realizar um filme em torno da música de Saleka, a sua outra filha, mais velha, cuja prestação aqui enquanto Lady Raven é perfeitamente convincente. Trap funciona como a mais singular apresentação das canções de Saleka, envolvendo o seu thriller com um musical pop contemporâneo. Shyamalan parece, claro, consciente desse seu “delito”, e não será descabido identificar o realizador com a personagem de Hartnett. O lado negro da mãe de Jody, a vida dual de um “pai” que também é “realizador” (e convém relembrar que Cooper também encena e filma os seus crimes) – e o crime maior, seguramente mortal, de juntar esses dois papéis num só espaço-tempo. Cooper não terá sido o primeiro a fazê-lo, como saberemos no desenlace final, mas deixemos essa parte para o filme em si.
Se a obra inicial do realizador, citando os exemplos evidentes de The Sixth Sense, Unbreakable ou Signs, se debruçava sobre indivíduos que protegiam a sua família de um perigo exterior, mais ou menos sobrenatural, em Trap essa ideia é corrompida ao focalizar o perigo no protagonista – e assim ao centro da própria unidade familiar. A fragilidade moral da América de Martha Stewart. Cooper, produto americano por excelência, apresenta uma imagem ideal enquanto pai de família nuclear – conceito que interpõe entre si e o mundo. E neste filme de “conceitos” que encobrem a natureza de cada personagem, que divertida, como absurda, a cena em que a cantora (de quem só conheceremos o título artístico e persona), se senta com a família suburbana a comer o bolo de aniversário, da véspera – um quadro inusitado onde todos mentem, ou todos se mentem.
Enfim, enquanto síntese abreviada da sua obra precedente, Trap será, em muitos aspectos, um dos filmes mais bem executados de Shyamalan. Existe aqui um equilíbrio perfeito entre a condução rígida dos actores, a expressividade artificial do trabalho de câmara, e o dispositivo original e algo despropositado daquela enorme armadilha. Um concerto pop enquanto fabuloso e irredutível labirinto para o nosso protagonista. A salvação parece quase ao (nosso) alcance quando, a meio tempo, a acção do filme abandona enfim o recinto do espectáculo. Mas como o título nos indica, Trap é um filme sem fuga possível. A partir do momento em que o mecanismo de Shyamalan está em marcha, qualquer indício de saída será o engodo próprio à armadilha. E esqueçamos então a brincadeira final do realizador (já na carrinha da polícia), para nos focarmos naquele abraço trágico e partida de Riley, como o paroxismo sentimental deste exercício. Não é o fim do mundo, esse de tantos outros filmes de Shyamalan. Mas com todas as imagens enfim desfeitas, por momentos, até parece.