Projectos falhados e experiências loucas, filmes bizarros, raramente marcantes. Maiores ou menores, na filmografia de cada autor encontramos sempre desvios pontuais, que excitam o apetite de qualquer ávido cinéfilo. Com Michael Mann, o momento mais invulgar chegou, ironicamente, após um filme de estreia muito marcado pelo forte estilo pessoal que identificaria a sua obra. The Keep, de 1983, hoje um pequeno segredo mal guardado, é a fantasia nebulosa de Mann. Um filme singular e atípico que, mesmo nos dias de hoje, de interesse generalizado por obras cinematográficas que se posicionem fora do cânone (seja esse “cânone” o que for), não parece ter grandes vozes em seu apoio. Por vezes renovam-se as banalidades inevitáveis, como o penoso “either you get it or you don’t”, mas The Keep é muito facilmente o pior filme de Michael Mann (fora todo o seu trabalho para televisão), não sendo, apesar disso, desprovido de valor ou interesse.
It’s constructed backwards…!?
A adaptação do romance homónimo de F. Paul Wilson, editado em 1981, The Keep decorre numa pequena aldeia romena dos Cárpatos, durante a Segunda Grande Guerra. Um grupo de soldados nazis ocupa uma misteriosa fortaleza antiga, acabando por libertar uma força sobrenatural maldita. A versão original de Michael Mann durava 210 minutos (um director’s cut hoje perdido). A Paramount Pictures exigiria que o filme fosse re-editado primeiro para 120 minutos e, após alguns test screenings falhados, para os 96 minutos da versão estreada em Dezembro de 1983 – que permanece, até hoje, a única versão difundida do filme. Estes cortes violentos (demasiado evidentes na segunda metade do filme) prejudicaram seguramente a sua legibilidade narrativa, mas é discutível se terão verdadeiramente “destruído” o filme. Na verdade, o problema aqui não é tanto que não se perceba a história, que não tem absolutamente pés nem cabeça, ou que a trama seja difícil de seguir, o que, apesar da aleatoriedade dos eventos, não é exactamente o caso. Não ajudam, claro, referências simplistas aos campos de concentração, ou o reconhecimento de alguns “bons nazis”, ideias em si bastante inaceitáveis. Mas do que nos fala, afinal, este The Keep ? Uma espécie de “revenge flick” contra a Alemanha Nazi ? Uma alegoria sobre uma maldade inerente ao mundo humano ? Nesta fábula sobre esse “mal”, soterrado pelos homens, cuja ambição e cobiça de alguns pode vir a libertar, o problema é sobretudo a falta de um evidente propósito que releve este devaneio excêntrico.
Ideias estranhas e demasiadamente desconexas, uma trama mal construída, mas também imagens loucas e marcantes, de uma fantástica extravagância que, mesmo num filme que a momentos se arrasta, evocam um quadro perigosamente próximo de um sonho surrealista. Ecos do Expressionismo Alemão (então em voga, pelas tendências revisionistas que enchiam o mundo pop), um glorioso e excêntrico falhanço. Total Eclipse of the Heart via Masters of the Universe, ambiente “sci-fi” poético-metafórico muito anos 80, com fotografia granulosa e pouco lisonjeira para com os actores (cf. Dune de David Lynch). Numa caverna infinita como o escuro da sombra, jogos de luz vistosos e animados, e um singular mostrengo (algo caricato, convenhamos), de seu nome Molasar, cuja figura pretende evocar o cinema dos primórdios do horror, mas relembra sobretudo Skeletor (sim, o arqui-inimigo de He-Man). A sua quase “ópera rock”, chegamos a desejar que Mann tivesse cedido a impulsos mais ligeiros e juvenis, que parecem a momentos prestes a explodir em cena. Nuvens misteriosas com os Fairlights de Tangerine Dream ao rubro. Cortinas brancas ao vento, corredores escuros, e sexo acrobático. Muito “slow motion”, e The Keep relembra Bonnie Tyler, cujo “eclipse” é também de 1983 (e filmado por Russell Mulcahy, futuro realizador de Highlander).
Paisagens romenas de cartão e um majestoso muro de pedra. Um filme tanto kitsch como soturno, mas bastante sedutor pelos seus momentos mais loucos. Claro que, com Scott Glenn (cujo personagem se chama Glaeken Trismegestus, deus nos livre) e o Gandalf (Ian McKellen já era velho aos 43), tudo cheira, por vezes, um pouco a mofo. E não há como contornar o aspecto barato de grande parte das sequências mais “normais” do filme, seja pela fotografia, pela sonoplastia desastrosa, ou, claro, pelos actores. Cinema não será exactamente uma questão de bom gosto, ou de execução exemplar; mas pela sua estética datada, The Keep é uma visita arriscada para vontades de cinema mais rigorosas. O filme é, no entanto, importante ao se aproximar dos pesadelos de Mann, que se revelam em imagens por vezes tão profundas como as fundações escuras daquela fortaleza. Seria, enfim, no seu filme seguinte, Manhunter (1986), que o autor cristalizaria em película, esses seus sonhos, de forma perfeita.
Go to sleep. And dream.