A arte de um século, e uma inenarrável ferida aberta ao seu centro. Falar do Holocausto sem falar do Holocausto. The Zone of Interest (Jonathan Glazer, 2023) nasce de uma impossibilidade. Baseado no romance homónimo de Martin Amis, o filme propõe um imaginado faux-documentário em torno da vida “normal” da família de Rudolf Höss – comandante do campo de concentração de Auschwitz, de 1940 a 1943, e de novo a partir de 1944 – na simpática casa de campo onde viveram, paredes meias com o reputado campo de extermínio em massa da Alemanha Nazi, na vila de Oświęcim, Polónia.
Glazer recusa aqui imaginar a inimaginável peur ininterrompue (Nuit et Brouillard, Alain Resnais, com texto de Jean Cayrol, 1956) vivida dentro dos campos, e concentra insistentemente as imagens do filme no dia-a-dia da família Höss. Oposição a um “espectáculo”, um quadro familiar idílico, com um gigantesco muro cinzento em pano de fundo. O filme evoca, de uma forma implícita e inteligente, a repetida mas sempre relevante questão sobre a possibilidade inaceitável de um crime desta escala e horror. O espectador não vê o campo, mas o campo é uma referência constante em cena, seja pelos ditos muros enormes, pelas chamas das aberrantes chaminés dos fornos, ou, sobretudo, pelo “som” do horror, velado, que se propaga pelo ar, como se de uma fábrica de morte se tratasse.
Um retrato dos Höss ao natural. As filmagens decorreram sem a presença da equipa no set, através de câmaras mais ou menos escondidas pela casa, para que os actores pudessem movimentar-se de uma forma mais espontânea e genuína, sem a obstrução psicológica e visual de uma máquina de cinema. Uma singular casa de bonecas para Glazer, o filme não segue uma trama ou história muito precisa, discorrendo sobretudo por cenas quase prosaicas – que não o são, claro, pelas razões mais evidentes – de uma vida em família. O casal e os seus desejos, as visitas de amigos e família, os jogos das crianças, os criados da casa.
Faire un film, c’est (…) montrer certaines choses, c’est en même temps, et par la même opération, les montrer d’un certain biais ; ces deux actes étant rigoureusement indissociables.
(…) pour de multiples raisons, faciles à comprendre, le réalisme absolu, ou ce qui peut en tenir lieu au cinéma, est ici impossible ; toute tentative dans cette direction est nécessairement inachevée (« donc immorale »), tout essai de reconstitution ou de maquillage dérisoire et grotesque, toute approche traditionnelle du « spectacle » relève du voyeurisme et de la pornographie.
De l’Abjection Jacques Rivette
Um filme em torno da simulação (o processo e a narrativa), a qualidade principal de The Zone of Interest será, na verdade, também o seu maior problema. Se o Holocausto não pode ser encenado – questão moral hoje evidente – para Glazer, a única solução justa será, precisamente, não o filmar. O filme evoca um certo anti-cinema – o tal “não mostrar” – que, parece-nos, acaba por não assumir de uma forma adequada, ou rigorosa. The Zone of Interest desvia o olhar do espectador, e oferece uma imagem desse não filmar, quando outra posição (mais concludente ?) seria a de fechar os olhos do espectador, e simplesmente não filmar. Glazer parece demasiadamente intrigado pela repetida questão (de “como mostrar”), e daí com a resposta que propõe ao espectador. E se o tema sensível do filme é potencialmente tratado com o distanciamento devido, a problemática de um produto de “luzes e som” em torno de um genocídio, orientado a um público apipocado em cadeirões de couro, nunca abandona verdadeiramente o campo – por muito longe que estejamos aqui de uma aberração como Schindler’s List.
Dentro da casa, o exercício de estilo a que Glazer se dedica é contido e equilibrado, sendo transportado, de uma forma pungente, pelo horror que emana em permanência do campo de concentração. Ainda assim, o procurado e assumido registo documental, impessoal, parece-nos ser levado demasiado longe. O posicionamento por vezes inusitado da câmara, ou os diferentes e múltiplos raccords dentro de uma mesma cena, são, a tempos, demasiadamente “descritivos”, ao ponto de se revelarem irritantes – e não será difícil arriscar que The Zone of Interest escorrega, por vezes, para fora de uma reflexão essencialmente cinematográfica. Talvez, por isso, sejam tão importantes, porque mais sensoriais, os aterradores e ocultos sonhos nocturnos da “resistência” (as maçãs), ou a curta, mas rica, cena na casa polaca, à luz de velas, sob os céus vermelhos do campo, que nos conduz àquela broken lullaby.
Enfim, numa obra cujo desenlace seria francamente difícil – como fechar uma história que não se chega a contar? – Glazer repete e reverte o motivo central do filme (o trabalho doméstico) noutro “lugar”, para efeito, aí sim, salutarmente provocante. E isto depois de, pelos seus momentos finais, alargar a geografia da acção (Höss em Oranienburg), com outras caras e uma devastadora lista de lugares que, sem imagens, transportam o horror e a abjecção daqueles eventos para uma realidade histórica mais alargada. Como evocar a Memória das nossas drôles de guerres, destes tempos de derrota ? As flores nos caminhos de ferro, nacht und nebel. The Zone of Interest não parece (querer) encontrar uma resposta.