A crítica à vacuidade de honra ou à falta de significado do código Bushido não são inéditos no cinema de época japonês. Se no western (género sobejamente conhecido por se inspirar nos filmes de samurais) encontramos a construção utópica da civilização dos EUA e, mais à frente, a desconstrução desse mito, o mesmo é aplicável à sociedade feudal japonesa. Não faltam exemplos desde as críticas humanistas e, por vezes, jocosas de Kurosawa às claras denúncias políticas de Masaki Kobayashi. Contudo, é difícil lembrar um filme tão pessimista e oblíquo na sua visão da identidade cultural do Japão como The Sword of Doom, de Kihachi Okamoto.
Se quisermos manter a analogia com o cinema do outro lado do mundo, será eventualmente na obra de Sam Peckinpah que encontramos o maior eco. A crítica política clara, metódica ou militante não tem lugar aqui. A que existe é-nos imposta pelo incómodo e repulsa que a violência presenciada impõe e, sobretudo, pela ausência de qualidades redentoras. O filme desprende-se, desde logo, do conceito de anti-herói, ao recusar a submissão das ações do protagonista a um julgamento moral. Desde o momento em que Ryunosuke Tsukue se materializa – qual anjo da morte – para ceifar um peregrino budista, até ao freeze frame final em que parece lutar com todos os samurais da região, somos deixados apenas com o horror de presenciar a sua mestria de violência, que se manifesta sem qualquer amarra a normas sociais ou legais.
A fórmula que tipicamente culminaria num grande confronto transformador (ou punitivo) com as “forças do bem” é substituída, aqui, por um jogo de constante frustração de expectativas, onde todos os subplots, todos os episódios de vida de Ryunosuke, todos os seus relacionamentos e até o build up para o combate final se esfumam num anti-clímax que não fornece qualquer razão ou redenção para a chacina. A única mutação que observamos no protagonista é uma descida progressiva às profundezas do alcoolismo e da loucura – tão opaca quanto o seu passado ou motivações. O seu sofrimento é claro, mas não nos tranquiliza por se assemelhar minimamente a remorso. Ao invés, inquieta-nos mais um pouco, ao dar a entender que os sucessivos impulsos assassinos a que se entrega correspondem ao saciar de um vício cada vez mais difícil de satisfazer. Assim – à medida que o sobrenatural vai dando lugar ao mundano, nesta personagem – desmorona-se o mito do samurai nobre e de um sistema social que delegava nestas figuras semi-divinas a gestão e, em muitos casos, a lei das terras japonesas.
O niilismo que envolve Ryunosuke é aprofundado nas restantes personagens. Quer pelo vazio das suas vidas (acentuado nas composições de planos de interiores), quer pela violência latente e constante que atravessa a maioria dos seus diálogos e ações. É na falta de um contraponto moral satisfatório, em qualquer das pessoas que cruzam o caminho deste assassino, que reside a acusação de The Sword of Doom. É neste mundo infernal, onde ninguém vive uma vida intocada pelo Mal, que nasce o monstro.
O empenho desconstrutivista seria suficiente para fazer de Sword of Doom um filme admirável, mas não necessariamente prazeroso. Felizmente, o útil engenho intelectual do argumentista Shinobu Hashimoto encontra o seu agradável contraponto na técnica meticulosa do realizador Kihachi Okamoto. A composição dos planos e regular ausência de banda sonora criam, em várias sequências, uma aura inquietante de proto-slasher; as sequências de combate são maravilhosamente coreografadas até ao último detalhe; os close ups de Tatsuya Nakadai e os jogos de sombras são de gelar as veias… Há motivos de sobra, neste grande clássico jidaigeki, para ficarmos fascinados com o Mal.