The Private Life of Sherlock Holmes (Billy Wilder, 1970) e Lancelot du Lac (Robert Bresson, 1974) – Cavaleiros Sem Mestre

Eduardo MagalhãesFevereiro 24, 2025

Il faut qu’ une image se transforme au contact d’autres images comme une couleur au contact d’autres couleurs. Un bleu n’est pas le même bleu à côté d’un vert, d’un jaune, d’un rouge. Pas d’art sans transformation.

Robert Bresson in Notes sur le cinématographe

Darryl Zanuck would slide into a scene, while Billie Wilder would say, “If you’re going to cut, you have to feel it, you have to have a reason.” (…) With Billie, you’re there, and it’s WOW! over to the right, WOW! over to the left, BANG! to the center.

Nicholas Ray in I Was Interrupted

 

O destino das grandes personagens é o da mitologia. Novos tempos trarão novos cantores, que, com as sua obras, tornarão a cada um dos grandes heróis que receberam do passado. A construção do artista leva ao reflexo da personagem. Uma nova imagem surge. Pensemos em Ulisses ou em Quixote, objetos do confronto entre um tempo e um lugar. Os seus criadores preferiram ser seus cronistas, libertando as figuras para outras páginas, para outro período que as tome como suas, para uma dimensão que coloque a sua abstração em xeque. Aí, já não importa a realidade a que a personagem se circunscreve, pois tomou palco a manifestação da sua identidade.

Billy Wilder com Sherlock Holmes e Robert Bresson com Sir Lancelot alcançaram isso mesmo, colocar o herói frente a um espelho. Nem o caso para resolver, nem a batalha para disputar são relevantes. Impedindo a evasão para o plano material, um incessante questionar atravessa os filmes. Quem é Sherlock Holmes? Quem é Lancelot du Lac? A resposta vai além do mencionado reflexo. Estamos perante dois filmes em que o inconsciente é despertado pelas imagens. Que vê Sherlock Holmes? Que vê Lancelot du Lac?

The Private Life of Sherlock Holmes Billy Wilder, 1970
Lancelot du Lac Robert Bresson, 1974

Wilder e Bresson podem parecer um par estranho. Será arriscado dizer que os filmes aqui apresentados são o mesmo. No entanto, podemos estabelecer uma correspondência entre a paralisia que assola o génio dos dois protagonistas.

Bresson sublinha sons e gestos como o relinchar, o chilrear, os cavaleiros a colocarem os capacetes, não em progressivo andamento rumo à clarividência, antes em repetição sinalizante de um esfarelar. Exaustão. O talento do seu Lancelot é inútil, algo que o próprio se apercebe face à imperturbabilidade da Natureza em relação aos jogos de poder do Homem. Por sua vez, Wilder não perde uma oportunidade de adicionar elementos à trama: monges, canários, anões, o monstro de Loch Ness, a rainha Vitória. Tudo artifício elementar do qual Holmes rapidamente extrairia um par de deduções e umas quantas gargalhadas, não fosse também ele afetado pela realização da sua incapacidade, neste caso através de uma mulher (como Lancelot). Logo, os dois filmes partilham um protagonista alienado do espetáculo do qual, contudo, não deixa de participar.

The Private Life of Sherlock Holmes” abre com os objetos associados ao famoso detetive: o chapéu, o cachimbo ou a lupa. Assiste-se a um inventário dos pertences. Como uma autópsia gentil, os objetos são devidamente rotulados e desempoeirados, à medida que a voz de um já falecido Dr. Watson (Colin Blakely) se dirige aos herdeiros. A narração – elemento caro a Wilder – fala de histórias nunca antes publicadas e revelações sobre a intimidade de Holmes (Robert Stephens). O genérico remata com um relógio de bolso que guarda um retrato de uma mulher e uma pequena seringa.

Mais que o mistério, a abertura de Wilder está, como o título indica, interessada em esmiuçar a personalidade de Sherlock. Corta para a primeira cena em que o detetive barafusta das invenções do amigo sobre a sua pessoa: a altura exagerada, o chapeuzinho ridículo, ou a descrição como inveterado consumidor de cocaína. A pose e os maneirismos de Robert Stephens, bem como a maquilhagem e o penteado, estariam à partida mais perto de Oscar Wilde do que a criação de Conan Doyle. O Holmes de Wilder tem sempre um aforismo na ponta da língua, um trocadilho no coldre, e ainda um sentido de humor finório. Porém, a face de eremita cedo se revela quer na fixação pelo pó, quer no desdém pelo exterior.

O prólogo de “Lancelot du Lac” é muito menos pessoal. Aliás, para Bresson as proezas de um cavaleiro são indistinguíveis de outro ligeiramente menos capaz. Sangue, morte, pestilência, eis o rasto deixado pelos cavaleiros de Artur na demanda pelo Santo Graal. Os suspiros durante a chacina ou o trote dos cavalos servem a découpage numa linguagem que se mantém durante toda a película. Vivos ou mortos, todos têm as mesmas armaduras e os mesmos rostos invisíveis. A única menção a Lancelot, pasme-se, é no texto com o qual o prólogo termina. Tal como os restantes cavaleiros, Lancelot falhou na demanda e regressa agora ao reino de Artur e de Guinevere.

Este não será mais um filme sobre os feitos dos cavaleiros da Távola Redonda, antes a exposição do seu ocaso e consequente eclipse. No entanto, fá-lo pela semente do fim do sonho de Artur: a paixão entre Lancelot (Luc Simon) e Guinevere (Laura Duke Condominas). A utopia de um reino próspero e verdejante desfeita pelo amor entre um homem e uma mulher.

E o que foi a demanda? Mais à frente no filme, num dos seus preciosos encontros, Guinevere confronta Lancelot. Um exercício de vaidade esse o de tomar o mundo como responsabilidade das suas mãos, mais o é o de recusar quem nos acompanha pelo desconhecido e pelo escuro. A demanda cegou os cavaleiros que, fascinados pela visão de um Graal todo-poderoso, se julgaram dotados de poder ilimitado. Artur já não existe para eles. Mordred, o vilão, foi apenas o primeiro.

Lancelot, condestável de Artur, foi na sua lealdade a Guinevere fiel a si e ao seu Rei. O corte com Guinevere, implicado tantas vezes como necessário para impedir a guerra civil, é a maior das traições. A rainha servirá de estrela da tarde num reino nublado. Único elemento imprevisível no filme, são dela os momentos mais iluminados. Guinevere é o espelho de Lancelot, recusá-la é negar-se. Tantas vezes ela toma a mão dele e ele a enjeita. Bresson insiste na repetição desta recusa e por isso o fim de Camelot é mais que evidente.

A transformação bressoniana não se esgota em contemplações. O confronto entre Lancelot e Guinevere prolonga-se pela relação entre as imagens. Veja-se o banho da rainha com as aias a escovarem as costas. Compenetrada no reflexo do seu rosto, Guinevere parece evocar aquilo que mais deseja. Bresson corta para fora do castelo, Lancelot pensativo olha para fora da sua tenda. O cavaleiro sente a necessidade de se aproximar do calor, assim como de tornar a usar o anel oferecido pela rainha. Consumada está a aproximação que tantas vezes falhou. Mãos ignaras que tantas vezes recusaram o toque, tornam à lembrança das mãos que demandam.

Não há interpretação destas imagens. Só funcionam na totalidade. A consistência de “Lancelot du Lac” está, usando uma expressão do realizador, na “força ejaculatória do olho”. Escrevi que Guinevere parece evocar o que deseja, porém nada mo indica. Como espectador do filme, acostumei-me ao par, não a dois corpos distintos. A imobilidade de Guinevere e Lancelot nesta cena foi mais potente que qualquer um dos seus malogrados encontros. Na união a separação, na separação a união.

No filme de Billy Wilder, há um momento da mesma tenacidade. Uma mulher belga foi retirada do rio Thames, em estado proto amnésico é levada ao 221 da Baker Street. Suplica que encontrem o marido desaparecido. Holmes é violento. Desconfiado de alguma charada ou brincadeira, dispara uma saraivada de questões, atormentando a vítima. Watson intervém e Gabrielle (Geneviève Page), exausta e perto do colapso, acaba a dormir no seu quarto. Algures na madrugada, um Sherlock pensativo procura entender o que se lhe apresentou. Como um poeta que procura palavras, mas que facilmente desiste, não se aproxima da mulher que repousa. É muito cedo. Fazendo lembrar a capa do primeiro número da revista Orpheu, é ela que se levanta, completamente despida, e vai ao seu encontro. “Émile? Émile!” Sherlock desperta da sua dúvida, entra numa outra vigília sem abandonar as suas deduções.

Num filme em que a sexualidade do detetive já tinha sido questionada e até desacreditada pelo próprio, Holmes vê a questão manifestar-se novamente. Tal como Guinevere é espelho de Lancelot, Gabrielle é espelho de Holmes. Enigma até ao final da película, que sabemos sobre ela? Será tudo teatro, revelação pela omissão? Alinha em todos os jogos do detetive. Habitua-se à dinâmica Holmes-Watson como fantasma de Dulcineia a pairar numa comédia de enganos. Calça um pseudónimo como quem experimenta um vestido novo. Em conjunto com os rapazes, até investiga nos campos escoceses as atividades do governo de Sua Majestade, cortesia do irmão Mycroft (Christopher Lee). Monstro de Loch Ness? Qual a próxima aventura?

E o que sabemos sobre Sherlock? Não é ele um enigma até ao final do filme? E é neste momento, entre o desconhecimento e o maravilhar, que Wilder constrói o seu Holmes. A distância entre as duas figuras sustentada no enquadramento. Os sucessivos cortes intensificam este intervalo até que o mesmo é desfeito com a aproximação da aparentemente alucinada Gabrielle. O imóvel Holmes não oferece resistência até ser seduzido para mais uma partida de dedução. Eis a chave. Holmes foi deliberadamente desafiado e não deu conta.

Ter Billy Wilder como um mero excelente dramaturgo é coisa de antanho. The Private Life of Sherlock Holmes afirma-se pelas suas imagens. O risqué não perde a força em trajes e décors vitorianos. Sim, estão lá as referências ao pai Lubitsch, até na intimidade dos quartos, até na sombrinha – primeiro questão de política internacional, depois veículo de uma grande declaração de ternura. Gabrielle, a força do filme, é a modelo bressoniana de Wilder sem necessariamente o ser. Não há qualquer intenção nos seus olhares, nos seus gestos, ou nas suas palavras. Porém, a ignorância é nossa, é a de Sherlock, e quão apropriado nos parece agora a sua expressão fechada.

Os finais avassaladores dos dois filmes são consequência da incompatibilidade entre o Romantismo e o Real. A chacina final no filme de Bresson e a violência em off no filme de Wilder apontam para uma redundância. Ainda antes destes epílogos, não será desajustado ver na morte de Gawain, momento mais sublime deste double-bill, a confissão desse fracasso. Gawain morre antes dos outros por ser o último guardião da ordem arturiana – lealdade ao Rei, à Rainha e a si mesmo. Compreende o amor entre Lancelot e Guinevere, porque, tal como Artur, ama-os. Assim que morre, morremos todos. No filme de Wilder, o irmão Mycroft, aqui reinventado num soberbo e genial burocrata, ao invés do obeso pachorrento de dois metros de Conan Doyle, é o embaixador da realidade com que temos de conviver. As suas polidas declarações surgem como alfinetadas para Sherlock. Conduz-nos, feito Caronte, para um sono que amargamente já conhecemos.

Lancelot foi visto pela última vez a suspirar o nome da Rainha. Sherlock fecha-se no quarto, reajustando-se à sua condição de eremita. A nós, resta-nos olhar para o céu, não vamos perder a estrela da tarde mais uma vez.

Eduardo Magalhães