The Pale Blue Eye: o Bocejo de Alan Poe

Scott Cooper é um realizador curioso. O seu primeiro filme, Crazy Heart, que valeu o Óscar de melhor actor a Jeff Bridges, deixava antever um autor americano de fórmula clássica, conservadora, com carga dramática q.b. e sem grande espalhafato. Seguiu-se Out of the Furnace, primeira colaboração com Christian Bale, provavelmente o melhor filme de Scott Cooper. Nesse ano de 2013 a lente do realizador filmava uma história de vingança e redenção numa américa ruralizada com pouca esperança, com um tom bem mais crú que o de Crazy Heart. Cooper continuou a filmar a América, desta vez pelos meandros do stablishment, com Black Mass, seguindo-se Hostiles: outro filme de redenção novamente protagonizado por Bale, desta vez no faroeste americano de finais do século XIX. Por fim Antlers, a primeira vez que Cooper saiu da zona de conforto assinando um filme de terror derivativo que, apesar de não ser péssimo, é um tiro ao lado e denota a falta de versatilidade do realizador. Chegamos a 2023 e Scott Cooper continua sem se conseguir consagrar como um grande realizador do mainstream conservador norte-americano e The Pale Blue Eye, em Portugal intitulado “Os Olhos de Alan Poe”, é talvez o seu pior filme.

Esta é mais uma produção Netflix, maior produtora de “conteúdo” do que de propriamente cinema, e The Pale Blue Eye é claramente vítima disso. O outrora promissor realizador torna-se tarefeiro com um argumento pouco ambicioso, cobarde e com receio em se definir. Aquilo que inicialmente é um thriller de mistério com notas noir (Bale diz presente no papel de detective que tenta desvendar um misterioso suicídio num campo militar americano em 1830) rapidamente desliza para o campo do terror e do romance sem identidade, divorciado de tensão e clímax. Ainda assim não está tudo perdido e The Pale Blue Eye tem pontos que o levantam do bocejo total (para piorar o caso a visualização em streaming no sofá convida aos perigos da sonolência). A atmosfera é rica, sombria e gélida, com belos planos conscientes aqui e ali. Christian Bale tem sempre uma presença magnética cativante, ainda que aqui esteja em modo piloto automático. A verdadeira estrela do filme, no entanto, é Harry Melling no papel de Edgar Allan Poe, o sidekick de Bale na investigação. O actor, que se deu a conhecer ainda criança como o primo idiota de Harry Potter, tem aparecido aqui e ali sempre com uma presença pujante e carismática que parece não se limitar ao que se espera de um character actor. Sempre com uma figura misteriosa e algo desconcertante e desconfortável, fruto de papéis algo redutores que teimam em fazer referência à fealdade, Harry Melling tem construído nestes últimos 4 anos uma carreira bastante sólida com papéis que ficam na retina em filmes como The Ballad of Buster Scruggs, The Devil All the Time ou The Tragedy of Macbeth, tendo ainda interpretado o icónico papel de rival de xadrez de Anya Taylor-Joy em The Queens Gambit. Estaremos atentos à progressão.

Tudo somado, The Pale Blue Eye acaba por ser um filme extraordinariamente liso e macio, onde fraquezas são equilibradas por virtudes, onde a ambição é quase nula, onde a noção de encomenda de grande estúdio tresanda. É o chamado encher chouriços. Mas ainda que se trate de chouriço corrente, sempre dá para tirar algum gostinho.

David Bernardino