Beautiful Dreamer, wake unto me,
Starlight and dewdrops are waiting for thee;
Sounds of the rude world heard in the day,
Lull’d by the moonlight have all passed away!
Há um desalento tórrido nos westerns de Anthony Mann, dir-se-ia que o passado incapacita o presente. Os seus protagonistas, sejam James Stewart, Gary Cooper ou Barbara Stanwyck, estão invariavelmente manietados por uma força que fazem por esconder. Ciosos da sua intimidade, a memória surge como ópio remetendo-os a um culto das suas chagas. Preciosas e terríveis lembranças ardem visivelmente nos seus rostos, sem com isso abdicarem da condição de intransmissibilidade. É sua escolha partirem fechados para o mundo.



Mann não pratica a prestidigitação, há nos seus filmes uma assinalável claridade. Limitando-se aos interiores de estúdio apenas quando necessário, a maioria da ação passa-se nas grandes paisagens dos estados do Arizona, Colorado ou Oregon. O imaginário do velho Oeste pensado exclusivamente pelas suas montanhas, pedregulhos, rios e céus. Neste palco de persuasiva simplicidade, as personagens movem-se rumo à fronteira, num ímpeto de recomeçar sem com isso ter desempoeirado a caravana. Temos, portanto, uma harmonia nas composições atravessada pela ambiguidade da trama.
Em “The Naked Spur”, Howard Kemp (James Stewart) é um bounty hunter à procura de um assassino. Para tal, recebe a ajuda de Jesse (Millard Mitchell), um velho garimpeiro, e Roy (Ralph Meeker), um soldado tresmalhado, que inicialmente o têm como oficial da lei. A máscara cai quando Ben Vandergroat (Robert Ryan) é apanhado e, sorridentemente, revela aos dois ajudantes a verdadeira natureza da intenção de Kemp: uma gorda recompensa pela sua captura. Descalço de uma pretensa autoridade que nunca confirmou nem negou, o protagonista terá forçosamente de seguir viagem com este trio, a que se soma Lina (Janet Leigh), a namorada de Ben, até chegarem à distante cidade de Abilene. Será uma longa e interessante viagem, povoada por tentações e revelações, pois o prémio terá necessariamente de ser dividido a três. Ou não?
Há algo que esta sinopse não revela, a secura e trato difícil de Kemp contrastam com o bom humor de Ben. Se a performance de James Stewart é pautada por uma brutalidade que o desliga do grupo, Robert Ryan, pese embora as mãos atadas numa corda grosseira, parece um velho conhecido de todos os viajantes, sempre lesto a dar um ombro ou palavra amiga. Uma figura isolada no plano, a outra alegremente partilhando espaço com a contracena. Estão lá os símbolos do positivo (o chapéu branco e lenço azul-claro) e do negativo (chapéu negro e lenço vermelho), mas as parecenças entre o casaco de um e a camisa do outro turvam essa assunção, levando-nos para além dela.
The Naked Spur
O filme poderia ainda ser discutido como grande confronto entre os dois tipos de personalidade saídos dos westerns de Hollywood. Por um lado, a persona solar de Stewart que, tal como John Wayne e Henry Fonda, tem de enfrentar os seus transtornos num contexto supostamente favorável. Não arredam pé das suas convicções. Sempre senhora dos filmes em que participa, esta vontade procura recorrentemente um fim (prémio, terra, vingança) e acaba despido pela materialização do mesmo. Do outro lado, a persona lunar de Ryan, como Robert Mitchum ou Burt Lancaster, embrenhado na desconstrução do mundo embora engolido por este. Veja-se como Ryan contempla a neve em “Day of the Outlaw” (André de Toth, 1959), como Mitchum se lembra das botas em “Pursued” (Raoul Walsh, 1947), como Lancaster assiste ao fim de tudo, pacificamente, em “Ulzana’s Raid” (Robert Aldrich, 1972), ou ainda Ryan a fazer tudo isto nos últimos instantes de “The Wild Bunch” (Sam Peckinpah, 1969). Se os primeiros são filósofos, os segundos são poetas interessa-lhes a imagem apenas pela imagem.
Este diálogo é terreno fértil nos westerns de Anthony Mann, cinco dos quais protagonizados por James Stewart com o realizador a instar o velho cowboy a separar-se da sua solidão. As composições aproveitam cada escarpa, cada pequena mancha verde na paisagem para apresentar este problema. O cowboy surge sempre desalinhado da contracena, cavalgando em sentido oposto, a olhar para outra direção, e, muitas vezes, regozijando-se na sua teimosia.
Naturalmente, Stewart está acompanhado ora por um anjo bom, ora por um anjo mau (ver os chapéus e os lenços), mas não deixa de ser relevante que a sua grande fraqueza advenha da recusa de interação. Howard Kemp e os outros avatares de Stewart estão sós e recusam-se a sair da linha divisória, daí que a única coisa que sintam é o tormento e a angústia do passado. Kemp poderá “vender” Ben, mas o barqueiro exige outra moeda para passar à outra margem.
The Far Country
Bend of the River (1952)
“WHERE ARE THEY? I got to find her, I got to find her!” O grito de Kemp, um dos momentos determinantes da parceria Mann-Stewart, não é acolhido com estranheza pelos seus parceiros de viagem. Quase que adivinhavam que por baixo da irredutibilidade do pistoleiro devia estar algo mal resolvido. Deitado e em violenta convulsão, Kemp agarra Lina, à medida que vamos ouvindo uma versão instrumental de Beautiful Dreamer. Kemp fala agora, abertamente, de uma visão maravilhosa. Uma confidência irrompe da boca do herói, e o seu pesadelo serena.
Transformar o drama da intimidade em algo tão complexo, consegui-lo por umas poucas notas musicais e um improviso ensaiado na reação de Lina, e, ainda, albergar na imagem o que não se viu (o tal passado mistério) e continua a não se ver está ao alcance de muito poucos. Como diria Kubrick, ao cinema permite-se “escrever o Guerra e Paz num carrinho de choque num parque de diversões”.
The Naked Spur
De novo, Mann conduz-nos ao solo, à água, às árvores, a tudo o que também existe, e eleva a pergunta até ao céu, por este ser o limite do que vemos. O que leva Howard Kemp desta vida? Como a escultura do “End of the Trail”, tudo parece estar predestinado. Quero apenas voltar ao passado, ao sítio antes do erro, antes disto estar como está, antes de eu ser eu. Torna a dúvida: “Why? Tell me why?”
O plano abre. Janet Leigh olha para James Stewart, invoca o sonhador sem forçá-lo. Será ele capaz? A deixa musical, de novo Beautiful Dreamer sem letra, abandona a cena, segue rumo às nuvens. Os corpos rodam. Desaparecem. Afinal, as estrelas e as gotas de orvalho aguardam-nos, como a canção promete. E o passado? Aquele que estava também naquelas bátegas que caíam sobre a loiça por lavar?
Creio que José Afonso disse melhor:
Entre o sol e a lua
Sereníssima
Rodavas em silêncio
Noite fora
Fazíamos uma noite
De vigília
Do lado da montanha
Ninguém chora
Do lado da montanha
Ninguém chora