Uma opereta de 1905, de Franz Léhar, com libreto de Viktor Léon e Leo Stein, The Merry Widow (ou Die lustige Witwe, no seu título original) seria adaptada ao cinema cinco vezes, entre 1918 e 1962. A história é a de uma viúva rica, que detém uma quantidade importante do capital de um pequeno estado europeu, Pontevedro (…Montenegro), e dos esforços dos seus conterrâneos para que o seu património não deixe o país, nomeadamente casando-a com um nobre local. Um grande êxito internacional, a primeira adaptação ao cinema viria pela mão de Michael Curtiz (em 1918), ainda na Hungria das suas origens, mas seriam as duas versões subsequentes, nos anos 20 e 30 do século passado, que se revelariam obras essenciais (e enormes sucessos comerciais). Erich von Stroheim, em 1925, e Ernst Lubitsch, em 1934, realizariam dois filmes profundamente distintos a partir dessa mesma base narrativa – duas obras de autor no sistema dos grandes estúdios de Hollywood clássico.
O filme de Stroheim seria realizado para a MGM em “compensação” do maior desastre comercial da sua carreira, o lendário Greed (1924) – cuja produção fora um prejuízo tal que, mesmo um dos maiores sucessos de bilheteira do ano seguinte, esse seu The Merry Widow, não conseguiu cobrir. Stroheim viria a desdenhar o filme como mera “encomenda”. Mas revisto hoje, e seguindo a sua narrativa muito peculiar, quando comparada com a história original, é difícil não ver aqui um filme “personally directed” por Stroheim (como o próprio singularmente nos relembra no genérico), monumental e barroco, e uma evidente obra prima dos últimos anos do cinema mudo.
Lubitsch realizaria um filme muito diferente, em 1934. Uma cintilante e (en)cantada comédia romântica. O filme foi realizado nos primeiros anos do código Hays (introduzido em 1930, e aplicado de forma estrita a partir de 1934) e seria o último grande atrevimento do realizador, numa sequência de quatro comédias “sexuais” com Maurice Chevalier (entre as quais realizaria outras obras importantes como Trouble in Paradise ou Design For Living). Musicado e infatigavelmente falado, o filme de Lubitsch é airoso e abstracto – onde a versão Stroheim é faustosa e realista – e revela-se, apesar do forte cunho pessoal do seu autor, uma versão bem mais fidedigna do material de base.
Dois modelos de amor, dois autores no auge da sua criatividade. E como nos diria Stroheim :
Lubitsch shows you first the king on the throne, then as he is in the bedroom. I show you the king in the bedroom so you’ll know just what he is when you see him on his throne.
*
1925, a versão de Eric von Stroheim
por Eduardo Magalhães
Imaginário infantil, fúria adolescente e pulsão sexual. O cinema de Von Stroheim está repleto do grotesco e do sofisticado, apontando para uma linha ténue entre os dois. É recorrente a figura do fidalgo aperaltado, de manicure em plano de detalhe, agindo por impulso à mínima coxa rendilhada que se lhe afigura atrás do monóculo provavelmente sem graduação. Impecavelmente vestido, contorna a poça malcheirosa, para de seguida esboçar um esgar atrevido para a filha do taberneiro. O destino tanto pode mergulhá-lo no mais recôndito esgoto, como açoitá-lo no pináculo da montanha. Na sofisticação o ridículo, turvando a contemplação do grotesco que já não é distinguível do resto. Assim foram Blind Husbands (1919) e Foolish Wives (1922), primeiros filmes de Eric von Stroheim. Assim é The Merry Widow (1925).
Todavia, Merry Widow diferencia-se pelo ânimo infantil. Não só por abrir com a toada de um conto de fadas (“lá longe, num reino temente a Deus, vivia…”), mas, sobretudo, por ter nos protagonistas crianças grandes (algo que já acontecia em Greed, de 1924 – o filme que o antecede na obra do realizador). Fazendo um exercício de memória, cedo nos lembramos de um qualquer episódio de infância em que alguém agrediu ou incomodou alguém, seguido do pranto da vítima e, agora talvez mais difícil, da lenta convalescença do agressor que, no progressivo germinar do seu arrependimento, se apercebe do mal da ação praticada e se compadece do sofrimento do outro. Pois bem, é isto que sucede quando o Príncipe Danilo (John Gilbert) se preparava para violentar a bailarina Sally O’Hara (Mae Murray). A diferença para outros cineastas está na maneira como Von Stroheim enceta o quadro. Primeiro, temos os músicos vendados (que muito devem ter irritado os patrões da MGM), indiferentes ao que se passa, como querubins pacíficos. Depois, temos a reação de Sally à colherzinha de caviar e a tudo o que o Príncipe lhe oferece. Maravilhar inocência que não pretende beber do mesmo cálice. O filme consegue dissolver a tara do príncipe numa posição moral, fiel à do velho mestre D.W. Griffith (veja-se Judith of Bethalia), sem nunca erigir moralismos.
Sem querer ser injusto, parece-me que Von Stroheim leva (e bem) o romantismo e decadentismo muito a sério, ao passo que Lubitsch está muito mais empenhado em reinar connosco através do jogo da sedução. A opereta (não nos esqueçamos que The Merry Widow é uma opereta) é “o instinto sexual expresso por melodia”, para citar Offenbach. Portanto, assentaria muito melhor a Lubitsch, geómetra cujos compassos desenhavam triângulos dançantes, quer fossem isósceles (Trouble in Paradise), equiláteros (Design for Living), ou escalenos (Angel). Na sua Viúva Alegre podemos até arriscar um icosaedro de reações à paixão entre Danilo e a viúva (aqui Sonia em vez de Sally). Para Von Stroheim, as reações que importam são outras: mostre-se o aristocrata a reagir aos “little pigs”, para ficarmos a saber, como mencionado acima, “just what he is when you see him on his throne”. Por isso teve de reescrever integralmente o libreto da opereta. Por isso se esteve marimbando para os arcos da trama original.
A desfaçatez de Von Stroheim para com o material original é tanta, que o momento da viuvez da viúva, passe o pleonasmo, surge como um ponto de exclamação. Até então não sabíamos quem era a viúva do título, para depois, em coisa de terríveis segundos, entendermos a facilidade com que se adquirem títulos. Ei-la! Com a sua coxa em semifusa (como diria Lobo Antunes), também há música num filme mudo! Pronta para conversar com os “little pigs” deste e de outro mundo, cantando e dançando na mesma tonalidade que todo o Homem conhece, aquela que brilha…
*
1934, a versão de Ernst Lubitsch
por Miguel Allen
Here they are. All your little tonights. And not a tomorrow among them.
Uma grande parada de amor. A quarta e última colaboração de Lubistch com o impagável Maurice Chevalier, The Merry Widow seria a última extravagância do realizador antes do código Hays.
Um autêntico delírio cinematográfico, um filme insuperável quando “in Paris”, mas algo desequilibrado nas partes do reino fictício de Marshovia, a abrir e fechar o filme. Os seus primeiros 20 a 30 minutos sofrem da mesma indecisão de The Love Parade (outro musical, de 1929, também com Chevalier e Jeanette MacDonald), apesar deste filme ser, globalmente, muito melhor. Algures entre dois “amores” : a comédia sexual de Chevalier e o enlevo sentimental de MacDonald (aqui consideravelmente mais “serena” do que na dita comédia de 1929), o filme entra de rompante com um regimento militar a cantar “Girls, Girls, Girls” pelas ruas, para passar, logo de seguida, para uma sisuda cena de opereta romântica, ao luar.
A “comédia de enganos” com Rei Achmet e a sua mulher, e… Danilo (Chevalier), próxima da inteligência de The Smiling Lieutenant (de 1931), é simplesmente perfeita. Mas será nas sequências francesas que Lubitsch se lança, enfim, na mais surpreendente e apaixonada bebedeira cinematográfica possível.
Have you ever had diplomatic relations with a woman ? Danilo é enviado para Paris, com a missão secreta de seduzir Sonia, a viúva (MacDonald). Despreocupado, Count Danilo prefere passar a noite no cabaret Maxim’s com “Lolo, Dodo, Juju, Cloclo, Margot, Frufru…” Mas Sonia segue-o, fazendo-se passar por uma das (suas) girls de cabaret. Os dois acabam, claro, por se apaixonar, sem que Danilo se aperceba que se trata da dita “viúva” que tinha a missão de conquistar.
Tudo se passa entre grandiosas composições de movimentos circulares, padrões Déco, preto, branco e reflexos. Terrivelmente desenvolto e alegre, muito namoro e sexo a encher a tela – o romance culminará numa magnífica valsa enquanto deslumbrante jogo geométrico. A ressaca, é evidente, será menos doce, com um desenlace algo despachado no regresso ao país natal. Mas a cena na cela de prisão só pode mesmo ser a mais louca boda jamais filmada. Num filme onde qualquer diálogo é perfeito, mais ainda é imaginado e dito sem palavras. E claro, nada é certo no mundo, excepto o amor e impostos !
Oh it’s great to be in love !
The Merry Widow, de Ernst Lubitsch, passa no próximo dia 20 de Maio, na Cinemateca Portuguesa, no quadro de um ciclo permanente em torno das escolhas de Bénard da Costa.