“No more gods to burn” atira Daniel “Danny” Dravot (Sean Connery) ao amigo e companheiro de armas Peachy Carnehan (Michael Caine). Numa gruta, refúgio improvisado perante uma tempestade de neve, os dois conversam de forma franca sobre o que foi e o porvir impossível – as suas quimeras demasiado reais. O pacto estabelecido entre eles dita que, enquanto não alcançarem a província do Kafiristão e seus senhores se tornarem, permanecerão abstinentes de qualquer vício. Peachy funcionará como a metade autodepreciativa, rindo das desgraças e apontando os pés de barro da empresa alucinante. Danny, o lado ambicioso da empreitada, procura fugir dos grilhões polidos que a rotina de servo do reino de Sua Majestade lhe oferece.
Riem-se alto, que vale procurarem santuário? Reis? Riem-se mais alto. Uma avalanche encontra-os e constrói uma ponte, respondendo ao questionamento da demanda. Nesta cena, antecâmara da epopeia trágica que será “The Man who would be King” (1975), temos toda a plasticidade da linguagem maçónica que Kipling propositadamente inculcou no seu conto homónimo: homens como deuses, natureza como artifício, o que é invisível é o que está à vista e demais oxímoros por inventar.
Chegados ao Kafiristão, a primeira tarefa que enfrentarão será o auxílio a uma pequena povoação atormentada por inimigos. A apresentação dos nativos segue os preceitos da missiva colonialista: “introduzir a Civilização, disciplina e ordem, a pobres selvagens ignorantes”. A traduzir a dupla britânica teremos Billy Fish (Saeed Jaffrey), soldado Gurkha único sobrevivente de uma expedição britânica. Fish será o arquétipo que falta na construção do império, o “selvagem já formado”, fiel aos ensinamentos europeus e simultaneamente eivado de uma doce ingenuidade. Um pormenor de prenúncio delicioso toma o campo/contracampo de Peachy, Fish e Danny versus o chefe da aldeia, este último e Danny aparecem com as respectivas cabeças cortadas no plano…não esqueçamos o humor do realizador da película, John Huston, velha raposa da Hollywood clássica.
Segue-se o treino das tropas, a câmara segue o enfado (cómico) de Peachy e as visões de Danny. A batalha não vale pela sua grandiosidade, é até interrompida, logo no começo, pela passagem dos “holy men” da cidade santa com os olhos fechados à injustiça do mundo. Outro elemento atravessa-se pelo filme: idolatria. A batalha prossegue. Danny é atingido por uma seta mas continua incólume, o amuleto maçónico no pescoço é a prova consequente para os nativos: um deus, o filho de Sikander (Alexandre, o Grande) prometido!
Connery não permite que a sensibilidade da sua personagem se eclipse, nenhum ataque de grandiosidade o atinge, antes uma nova leitura se afigura: ficar e construir. Nesse aspecto, contrasta com a descida à loucura de Humphrey Bogart em “O Tesouro de Sierra Madre”, outro filme de John Huston que lida com a fácil corrupção do Homem quando tentado. Não, não será a coroa de rei, o poder de deus, ou os tesouros infindáveis na Cidade Santa, prontamente convertidos em libras por Peachy, que o tentarão…uma Roxane (tal como Alexandre) bastará. O pacto de abstinência prepara-se para ser rasgado, Peachy recorda até como foi interpelado por Danny a curvar-se perante ele, “just to keep up the appearances”. O afastamento entre os dois ganha expressão nas sentenças salomónicas que Danny dita, enquanto um Michael Caine sorumbático observa de longe.
É fácil concluir que uma vez quebrado o elo que sustenta a empresa, não a idolatria dos nativos, não a orgânica colonialista implementada, mas a amizade entre os ingleses, tudo rapidamente desmoronar-se-á. Não é passível de ser negado que o impossível imperial e a máscara de falso ídolo cedo revelar-se-iam. Resta-nos o plano de Rudyard Kipling (Christopher Plummer) horrorizado quando um desdentado e torturado Peachy lhe conta o fim da história. Curioso como Huston tornou o interlocutor final de Peachy, personagem anódina no texto original, no próprio Kipling, o poeta do “white man’s burden”. No more gods to burn indeed!