The Diary of a Chambermaid – Movimento em flor

Eduardo MagalhãesAgosto 15, 2024

Jean Renoir não logrou uma carreira estável nos Estados Unidos, nem mesmo um curto estado de graça, à semelhança de outros realizadores emigrados em Hollywood (Hitchcock, Lang, Sirk, ou até o seu conterrâneo René Clair). Entre visões comprometidas e material mutilado, os cinco filmes americanos realizados pelo francês estão ainda muito longe do consenso à volta das obras dos anos 30 (“La Grande Illusion” e “La Règle du Jeu” à cabeça) ou da recuperação entusiasta da chamada trilogia do espetáculo (“Le Carrosse d’or”, “French Cancan” e “Elena et les Hommes”).

Além das dificuldades encontradas na adaptação ao studio system, poderíamos justificar o insucesso desta mão-cheia por nenhuma das obras cair dentro de um género ou servir de veículo costumeiro a uma grande estrela. Acresce que Renoir filmou em Hollywood entre 1941 e 1947, com uma linguagem eivada de uma ambiguidade pouco apetecível em tempos de guerra.  Tomemos “This Land is Mine”, o mais bem-sucedido de todos, que centra a ação num Charles Laughton a tremer de medo dos nazis à frente de crianças. Disserta sobre a cobardia numa época fértil em promover heroísmo, firmeza e abnegação. Renoir não se inibe de ligar a cobardia à rotina, às saias da figura maternal, ao conforto do anonimato, em suma a sentimentos familiares a todos nós. O cobarde está a poucos segundos do corajoso parece dizer. Esta exposição de conteúdo, não sendo inédita daquele lado do Atlântico, parecia reger-se sobre um código distinto.

Consideremos agora a forma. Admirador de Chaplin, von Stroheim e McCarey, o realizador francês não era estranho nem hostil à linguagem americana. Se McCarey termina os seus belíssimos “Make Way for Tomorrow” e “The Bells of St. Mary’s” com planos demorados das suas atrizes, prolongando a reação do sentimento que a ação despoletou, em Renoir, valoriza-se a articulação da expressão ao movimento. Exige-se que a sucessão de planos esteja pautada com o andamento da cena, o movimento da câmara surge como síncope.

Lembremos como o clímax de “Le Crime de Monsieur Lange” atesta este raciocínio. Vemos um homem prostrado, em pleno estertor, junto a uma fonte no meio da rua. Uma testemunha embriagada clama por socorro sem sucesso. Através desta última, a câmara percorre rapidamente esta e aquela janela para nenhuma resposta. Regressamos ao primeiro homem. Já não se mexe, paramos na sua figura que dissolve para a luz projetada na estrada por faróis de uma viatura que se move a velocidade furiosa. Munindo-se do poder do movimento, o realizador alcança a imensa proeza de imprimir aflição em crescendo.

Outra diferença de Renoir é o recurso ao inesperado, elemento que adiciona à ação. Por inesperado leia-se a transformação do acessório ou dispensável em fundamental. Exemplificando, o horror de “La Chienne” não tem remate possível. Porém, algo quase esquecido, sem aparente importância, volta a atravessar-se no caminho do protagonista que desata à genuína gargalhada .

“The Diary of a Chambermaid” (1946) é um dos grandes triunfos do francês, não só dando palco às motivações da ação como oferecendo uma prodigiosa musicalidade à sua manifestação. Sim, conduzirá a recursos estilísticos, podemos ver metáfora e hipérbole, e encontraremos a profundidade de campo a servir o propósito narrativo, mas nada disso é causa aparente do suscitado pela câmara. Tudo reforça, nada é forçado.

Para melhor descrever estes argumentos, destaquemos a cena em que Célestine (Paulette Goddard), a criada de quarto titular, se deixa seduzir pelo liberal vizinho dos seus patrões, o capitão Mauger (Burgess Meredith). Já peculiar pela naturalidade com que se deliciava com as flores do seu jardim, o capitão procura aqui deslumbrar a apetecível serviçal.

Dispara tiradas cómicas sobre os vizinhos: “And the son, have you seen him yet? He’s a monster, a monster, he’s got two heads and a tail. I wouldn’t even eat him…”, apresenta o amigo esquilo. Enfim, repleto de charme e esdrúxulo como uma personagem de “Alice no País das Maravilhas”, até que começa a proclamar promessas caso se casem. Riquezas para ambos, abaixo as convenções! “I give it to you… I give it all to you!”. No despertar do apetite mata o esquilo, atónito, permanece a acariciar o amigo caído. Célestine tem aqui um dos muitos choques com a brutal fragilidade (ou será frágil brutalidade?) da classe a que quer desmesuradamente pertencer. Difícil pensar em melhor cartão de visita para este Renoir americano.

Passado algures numa França improvisada do final do século XIX, o filme recai mais sobre o desmoronar das classes do que a luta entre elas. A aristocracia falida move-se orgulhosamente no curto espaço que lhe resta, enquanto a classe popular que a serve oscila entre sinistra cobiça e ingénua lealdade. Assim seria caso não tivéssemos acesso a pequenos momentos ilustrativos do carácter de cada uma das personagens. A apresentação do detalhe, a minúcia do gesto e o intervalo concedido pelo movimento são tão fortes como qualquer linha de diálogo.

Joseph, o valete, age em silêncio, mastigando um cigarro enquanto esconde um pensamento. Já Célestine e Louise, as criadas, vocalizam receios e ambições. Há na economia das palavras do primeiro uma impressão mais completa. Joseph não está longe de um dos monstros da Universal, seguindo fielmente o ditame da patroa, Madame Lanlaire, interpretada por Judith Anderson, em sibilino empréstimo de “Rebecca” de Hitchcock. Nesta relação nimbada por um erotismo insidioso, valete e senhora complementam-se na gestão da casa. As duas criadas, fruto de serem aquisições recentes, comungam numa alta ingenuidade mesmo na possível ambição que detenham. Pertencem a outra verdade, a dos diários e das nuvens, ao passo que a Madame e o instruído Joseph há muito abraçaram a lâmina e o estalo.

Relativamente aos outros homens que compõem o elenco principal, Renoir não tem pudor em apresentá-los como fracos. O referido capitão Mauger tem uma sombra, uma grande sombra, a sua governanta que não poucas vezes em berreiro histérico desata: “My baby, where is my baby?”. Qualquer semelhança com os cartoons contemporâneos de Tex Avery e Bob Clampett, nomeadamente os seus Looney Tunes, não será coincidência. O capitão Lanlaire, esposo de Madame, ostenta uma barba e pouco mais, já o filho de ambos, George, é o que acontece quando uma criança é habituada a vestir robes de seda cedo demais.

As barreiras de classe tão presentes na obra prévia de Renoir, que impossibilitavam um convívio interclassista (“La Grande Illusion” mais uma vez), desapareceram. Colocando-os em pé de igualdade, a liberdade da Revolução deixou-os sem regras ou ordens para cumprir. Malheuresement, o dia seguinte, o 15 de Julho, o 5 de Julho, o 26 de Abril, são todos iguais. Uma busca incessante pelo conforto até o mesmo se transformar em tédio, depois loucura. A estrutura de poder, essa, não desapareceu. Logo, mesmo que Célestine tenha o destino de Cinderella, não repetirá ela o que viu?

A República libertou o Homem, mas nesse expresso parece ter ficado apenas pela primeira estação, a da Liberté. Fica, para o melhor e o pior, o diário, por enquanto…

Nota: A exibir em cópia digital restaurada no dia 25/08 no Cinema Nimas (Lisboa)

 

Eduardo Magalhães