The Dead Don’t Hurt, de Viggo Mortensen: Uma conversa com o realizador

Rafael FonsecaDezembro 3, 2024

The Dead Don’t Hurt (Até ao Fim do Mundo), agora nas salas, é um projecto pessoal para Viggo Mortensen, que escreve, realiza, produz, interpreta e é até responsável pela composição da banda sonora, uma surpresa para mim (a Wikipedia diz-nos que Viggo, além de ter já composto para O Senhor dos Anéis há vinte anos, costuma colaborar com o guitarrista Buckethead, o que é uma surpresa maior). De todos estes encargos, que compõem então um trabalho de autor total, o único imprevisto era a interpretação: após a saída do projecto por parte do actor originalmente associado, Mortensen entrou, com a permissão de Vicky Krieps – como nos conta na conferência de imprensa onde a Tribuna do Cinema esteve presente, no âmbito do LEFFEST 2024, onde o filme teve a sua ante-estreia – e é então obrigado a transformar o protagonista em alguém um pouco mais velho, e, já agora, de ascendência dinamarquesa.

Fotografias de Andreia Mayer

Em relação a este seu segundo filme enquanto argumentista e realizador, porquê um western, e porquê esta história? Mortensen explica-nos que, como em outros argumentos que escreveu, as ideias se seguiram a uma imagem seminal que tinha em mente, neste caso a imagem, uma imagem muito tradicional que se mantém no filme, da menina na floresta, curiosa e exploradora, a cruzar-se com uma espécie de cavaleiro ou de protector, na sua imaginação, rêverie fruto de histórias em torno da guerreira Joana D’arc, lidas em casa. A esta imagem, Viggo associou um tipo de cenário, um ambiente. Pensou nas florestas da terra onde a sua mãe cresceu, no nordeste americano, perto da fronteira com o Canadá, e onde veio depois a morrer. Para o filme, diz, procurou encontrar o mesmo tipo de declive, de árvores. É então uma homenagem assumida à mãe: a rapariga na cena imaginada teria uma personalidade semelhante, muito curiosa, aventureira. A sua mãe, diz-nos Viggo, foi uma mulher de circunstâncias quotidianas mas de uma força interior extraordinária. Neste quadro em que pensou, estaria como que a olhar para a infância de uma rapariga como ela. Que tipo de mulher se tornaria então esta personagem? Quando se localizaria esta história? Equacionou então colocar a personagem no século XIX, e pensou então em escrever um western.

Viggo Mortensen, realizador e actor em The Dead Don’t Hurt – Até ao Fim do Mundo

Mas um western protagonizado por uma mulher, esta é a característica motriz do filme que ressalva, e não, diz-nos, uma mulher “extraordinária”, como Barbara Stanwyck em Forty Guns (Samuel Fuller, 1957), a poderosa dona de um rancho, ou de novo Barbara Stanwyck em The Furies (Anthony Mann, 1950) onde é uma herdeira influente, ou Claudia Cardinale: estas não são mulheres comuns. A Vivienne de The Dead Don’t Hurt, interpretada por uma Vicky Krieps que Mortensen viu pela primeira vez em The Phantom Thread (2017) de Paul Thomas Anderson, é uma mulher comum, e centra em si um western real, que não entra em terrenos exploitation ou pulp – “Porque é que ela não os mata a todos?” pergunta-nos em discurso indirecto a certo ponto, citando um compósito de questões de adolescentes que terá tido em Q&A’s. Aqui, Vivienne não pode simplesmente pegar numa arma e ir ajustar contas à cidade, não é possível, tem uma criança de quem cuidar, não tem o poder físico para isso. É sim a personagem, de entre todos, mais psicologicamente resistente e obstinada. O filme centra-se nela – existe uma cena chave que sublinha esta prioridade: a certo ponto, a personagem de Viggo, Holger, parte para a guerra civil. Noutros westerns, diz-nos, seguiríamos esta personagem. Aqui ficamos com Vivienne: não vemos, na verdade, um único plano da guerra.

Vicky Krieps e Viggo Mortensen são os dois protagonistas de The Dead Don’t Hurt – Até ao Fim do Mundo

Mortensen é evidentemente um fã do género: além deste conhecimento dos antigos, cita-nos também na conferência de imprensa Kelly Reichardt como uma autora contemporânea também interessada em perspectivas femininas mais inusitadas no western. Para se preparar para esta realização, reviu principalmente muitos filmes do género, onde diz que se encontra um bom trabalho de direcção de arte e recriação, devido à proximidade temporal que os parentes dos actores e técnicos desses filmes, especialmente os mudos, teriam ainda com o tempo real da situação histórica. Além disso, já andou muito a cavalo em filmes, e na vida; diz-nos que cresceu a fazê-lo, desde os três, quatro anos de idade: esteve confortável nesta situação de controlo artístico e técnico total sobre o filme. Os desafios relatados são os do costume: um estar em cena com consciência de todos os aspectos técnicos à sua volta, uma maior indisponibilidade para uma cumplicidade com o restante elenco, tendo de dividir a sua atenção e tempo com todos os chefes de sector, etc.

Fotografias de Andreia Mayer

O filme tem uma adicional característica incomum, uma montagem ‘não-linear’ – de forma suave – onde além das cenas de infância de Vivienne já mencionadas acompanhamos a acção em dois momentos temporais distintos, espaçados por alguns anos. A primeira cena do filme é na verdade a morte de Vivienne na cama, e vemos depois a personagem de Viggo a proceder ao seu enterro, com o pequeno filho dos dois sentado ao seu lado; a segunda cena, um tiroteio com consequências fatais no saloon da cidade: vemos as consequências destes eventos ao longo do filme, em cenas do “presente” intercortadas com a história do encontro entre os dois protagonistas e a sua vida em comum, que ocupa a maior parte da minutagem. Viggo e o seu montador experimentaram a ordem cronológica, mas esta opção foi a preferida: ao mostrar ao espectador logo ao início o desfecho das personagens, este faz uma visualização informada pelo conhecimento desse destino funesto. Dá, diz-nos, uma importância diferente às coisas.

Vicky Krieps é a personagem Vivienne;

The Dead Don’t Hurt, infelizmente, acaba por ser um filme muito inofensivo, com uma amplitude psicológica algo reduzida – por exemplo, os vilões são maus de uma forma muito rudimentar, gasta-se até pouco tempo nisso; o conflito final é também resolvido de uma forma algo inverosímil. Faz-nos lembrar aquele tipo de filmes com algo a oferecer a cada membro de uma tarde em família, com um pouco de acção sem exagero, um pouco de sensibilidade consensual e sem qualquer problema em uma criança estar presente. O “filme de família” é de qualquer forma porventura a expressão de ordem. Uma homenagem sentida de Viggo à sua herança, de várias maneiras; mas em termos de cinema possui talvez essa característica do quotidiano, do não-extraordinário e do comum que diz ter procurado na mulher que não é a herdeira poderosa, no western que não “vai à guerra”.

A Tribuna do Cinema gostaria de agradecer a Viggo Mortensen, ao distribuidor e a todos os responsáveis pela conferência de imprensa.

Fotografias de Andreia Mayer

Rafael Fonseca