The Day the Earth Stood Still, de Robert Wise – Parte I: O Aviso

Eduardo MagalhaesSetembro 26, 2024

Tomemos o caso de um complicado e aparentemente infinito desafio, cujo grau de dificuldade se vai prolongando à medida que cada etapa é superada. Exige uma grande alocação de recursos e a combinação de diferentes talentos. Consideremos ainda os seguintes dois cenários: no primeiro estamos a resolver o desafio com a ajuda de outra pessoa, no segundo esta última é nossa adversária na medida em que quer resolver o problema primeiro e sozinha. Em qual dos cenários chegamos mais cedo à solução?

Na primeira hipótese, gozamos invariavelmente do trabalho de dois e não um. Dir-se-ia que o resultado da união das qualidades e meios de duas pessoas diferentes seria sempre superior ao trabalho de um simples indivíduo. Porém, ao saber da existência de um rival o desafiado terá de agir de forma mais célere. O receio de perder multiplica o estímulo, munindo o participante de uma mera propensão para uma maior velocidade na resposta. Acresce que no primeiro cenário há uma grande probabilidade de surgirem desentendimentos entre os participantes. Quem tem a última palavra? Como se divide o trabalho? O argumento da concorrência entre pares parece mais convincente que o da cooperação, não obstante estarmos a enquadrar o desafio como um jogo o que favorece tal preferência.

Terá sido neste contexto, no qual a matemática não subtrai o factor humano, que a Guerra Fria deu azo a uma corrida espacial. Vencedoras da guerra mais devastadora da História recente, duas forças supostamente antagónicas entregavam-se à nobre missão da exploração do Universo. Satélites, astronautas, sondas, a chegada à Lua. Não se tratava de uma questão científica apenas, era preciso chegar primeiro. No caso de parceria entre os Estados Unidos e a União Soviética, teria o Homem alcançado tão depressa o que conseguiu? Qual a importância e significado da exploração espacial hoje? Estaremos agora mais próximos da cooperação internacional até então impossível?

“The Day the Earth Stood Still” (1951) é um dos inúmeros filmes que aborda o tema do Espaço, isto é, do Desconhecido. Mostrando as peripécias da estadia do extraterrestre Klaatu (Michael Rennie) em Washington D.C., o filme tem poucos elementos fantasiosos e, alicerçado no panorama da Guerra Fria, demonstra mais uma vez que o género da ficção científica acaba sempre por passar incólume às referências da época que o moldou. A título de outro exemplo do mesmo ano, poderíamos citar “The Thing from Another World”, que há muito deixou de ser tido como uma mera parábola anticomunista, na qual o alienígena é a representação do pânico coletivo. Em ambos os filmes, o discurso militarista e o discurso científico parecem colidir na forma de dialogar com a força externa (ou “invasora”), um mais pragmático e o outro mais inquisitivo respetivamente. Porém, as duas partes acabam como a cara e a coroa de uma linguagem demasiado rudimentar para comunicar com o outro.

Mensageiro de uma confederação interplanetária, Klaatu tem uma mensagem para todos os humanos. Alto, elegante e bem-falante, o extraterrestre tem ares de super-homem. Parece pertencer a um povo que há muito ultrapassou as debilidades humanas. Os tiros de um militar ansioso traduzem-se numa ferida rapidamente sarada. É a reprodução de tudo aquilo a que poderíamos aspirar e age como tal. Contornando as questões que o diplomata lhe coloca, insiste em falar com todos. Não consegue, não entende porquê. As Nações Unidas e as relações diplomáticas existem, contudo, os humanos insistem em ignorar as regras do jogo que os próprios delinearam. É esta incongruência e não as pequenas tropelias que lhe pregam (o tiro, a detenção no hospital, barrarem-lhe comunicação) que quase o impacienta.

ROOM FOR RENT – From messenger to lodger (Klaatu mensageiro e peregrino)

Face à infantilidade das autoridades, Klaatu decide fugir e arrendar um quarto numa estimável pensão. Passando incógnito pela multidão, parece e age como um humano afinal, adota o pseudónimo de Mr. Carpenter. Muito se tem escrito sobre como nesta segunda parte o comportamento de Klaatu emula o de um Cristo regressado à Terra, desde a sua proximidade a Bobby, criança órfã de pai que vive na pensão com a mãe, Helen, aos milagres que opera ou ainda a traição de que é alvo. Episódios que desenham paralelos apetecíveis neste mensageiro que procura a salvação da Humanidade.

Este namoro com o óbvio serve diferentes propósitos, tem a capacidade de nos prender pelo imediatismo e convida ao retorno pelas questões que não coloca. A dada altura, vemos Klaatu no mesmo plano que a estátua do Memorial a Lincoln (outro Redentor) como se um fosse sinónimo do outro. Recorrendo a iconografia, os cineastas tornam o protagonista ainda mais atrativo. A bonomia de Klaatu dever-se-á à sua curiosidade para com o planeta que visita ou é inata à sua missão de salvamento? Na ambivalência do perfil do alienígena brota o tal elemento místico.

Klaatu pertence à categoria dos peregrinos. Nos estudos bíblicos de Emanuel Swedenborg, filósofo sueco que muito refletiu sobre a espiritualidade e as suas diferentes manifestações, considera-se o peregrino como aquele que, longe de casa, está naturalmente predisposto a praticar o Bem. Esta índole advém do convívio e partilha do lar com outros. Imbuído deste sentimento, todo o discurso de Klaatu é sincero e acessível. Algo particularmente palpável no choque aquando da visita a um cemitério militar, no qual Bobby lhe mostra o local de repouso do pai.

Tornemos ao jogo com que abrimos. Provavelmente Klaatu encararia todo o enquadramento e formulação ridículos, risível a necessidade de chegar primeiro que o outro à resposta, como se quando atingíssemos o pico da mais alta montanha não pudéssemos desfrutar do feito ou do momento porque já alguém o fez anteriormente. Relativamente ao cenário de interajuda, temos o momento em que conduzido a casa da maior mente científica do mundo, o professor Barnhardt (entre John Von Neumann e Einstein), resolve dar umas pistas no quadro das equações. Não sendo este o objetivo da sua vinda à Terra, Klaatu não é insensível aos problemas dos cientistas, daí que a sua mensagem seja também dirigida a estes.

Note-se que o extraterrestre não tem nada para aprender com o distinto professor. A companhia de Bobby, uma criança, é matéria suficiente para um peregrino. Como se a concentração científica no grau mais elevado da observação e pensamento tivesse na criança a montra para um patamar inatingível.

Mr. Carpenter, you don’t seem to know about anything.

– I’ll tell you, Bobby, I’ve been away for a long time. Very far away.

“Gort, baringa!” – Détente e a beleza do raio

Klaatu não vem só, a acompanhá-lo está um gigante incandescente que responde pelo nome de Gort. O mutismo e paralisia do robot são constantes, sendo este estado apenas interrompido quando projeta um raio de luz para proteger o mestre de ataques e ameaças. Mesmo em hibernação, Gort é ameaçador. A coadjuvá-lo está a música e efeitos radiofónicos de Bernard Herrmann, para os quais todos os adjetivos seriam insuficientes. A música é a voz de Gort. Em movimento tosco, o robot prossegue ao som da deixa deliberadamente lenta e arrastada com alguns pontos de imprevisibilidade.

A sua vinda é também fundamental, uma vez que Gort representa o futuro. Nas palavras do mensageiro é descrito da seguinte forma: “For our policemen, we created a race of robots. Their function is to patrol the planets in spaceships like this one and preserve the peace. In matters of aggression, we have given them absolute power over us. At the first sign of violence, they act automatically against the aggressor. And the penalty for provoking their action is too terrible to risk.” Eis a détente em todo o seu esplendor.

Robert Wise, criado nos estúdios da RKO como montador de Orson Welles, realizador pupilo de Val Lewton, e, mais tarde, autor de soberbos noir como “The Set-Up” e “Odds Against Tomorrow”, foi sempre tido como mais uma consciência liberal dentro do studio system. Refutando epítetos, demonstra aqui uma leitura perfeita do cenário internacional que se avizinhava. Gort e Klaatu não vêm para salvar a Humanidade, são o futuro dela!

Gort poderá ser sinónimo de sistemas de mísseis balísticos bem como de redes de monitorização e vigilância da população. A escolha é fácil, ou isto ou o apocalipse nuclear. Não compete ao realizador ir além do porvir ou estabelecer o limite da ação política. Uma nova forma suave e sinistra de terror (entre a música de Herrmann novamente) veio tomar o lugar deixado vago pelo fim da guerra.

Então e o peregrino? Como é que a sua mensagem e o seu perfil humanista se coadunam com todo este terror? Estaremos todos reféns deste elã messiânico que desaguou em pragmatismo resplandecente? Não foi todo este texto um longo contrassenso, na medida em que se procurou associar o filme à Guerra Fria, um evento datado. Apresentados os elementos, fica prometido um esclarecimento no futuro próximo, até lá: “Keep watching the skies!”

 

Eduardo Magalhaes