The Day the Earth Stood Still, de Robert Wise – Parte 2: O Homem Ilustrado

Eduardo MagalhãesDezembro 11, 2024

Numa época em que as representações sejam exclusivamente formadas por iconografia e retórica, a sensibilidade perderá gradualmente importância. Ouvimos o oráculo da semana, vemos a figura ou cena do momento que, multiplicados em comentários, atingem o ponto rançoso que faz com que tal estado de ruminação recomece com novo tema. Sem tempo, respondemos ao discurso e à força dos símbolos aderindo a qualquer leitura. A falta de espaço para pensar dá então vez ao imediatismo. Acenamos ou gritamos na plataforma de two-minutes-hate da nossa preferência. É, pois, nesta submissão involuntária, que o nosso inconsciente atentará na baliza da sua alienação. Aí, reparamos, as imagens e sons que nos rodeiam, não são pornografia ou propaganda, somente publicidade. Logo, não importa o que vemos, já não queremos saber, mas queremos ver e ver mais.

Naturalmente, a sensibilidade não desaparece em segundos. Estranho diagnóstico esse em que tudo se resumiria a uma questão de inteiro e vazio, certo e errado. No entanto, o recrudescimento da tal alienação, sobretudo se alimentada em coletivo irreal, conduzirá a uma metástase violenta. Progressivamente, perdendo autonomia, prosseguimos reféns de um corpo que age por reflexos que entendíamos como facilmente contornáveis.

 

The Man Who Fell to Earth, de Nicolas Roeg

 

Neste sentido, por muito que a ficção científica prolongue o pior dos cenários, não resiste a apresentar a centelha que, escondida no futuro, ainda guarda algo de incomensurável – o espírito humano. Pensemos nas últimas imagens de A.I. (Spielberg, 2001) em que tudo é manifestamente falso. A mãe a sorrir não existe, o rapaz não é um rapaz, as brincadeiras entre os dois são, porventura, má poesia embrulhada numa película de açúcar indigesta. E, no entanto, até para aqueles que a desconsideram, a imagem evoca o resíduo inquebrável até que a luz do Sol comece a falhar.

 

A.I., de Steven Spielberg

 

O desfecho de “The Day the Earth Stood Still” soa como uma folha a ser rasgada. Imbuídos pelo conforto humanista da postura de Klaatu, é com espanto que ouvimos a sua mensagem. A peregrinação que o conduziu ao cemitério, à beleza da imaginação infantil ou à prodigiosa engenhosidade humana culmina num ultimato seco: “Join us and live in peace, or pursue your present course and face obliteration”. Já conhecemos o real desígnio de Gort, o filme já tratou de espelhar no gigante a força que movia o mundo em 1951. Então onde jaz a tal chama inapagável que falámos anteriormente?

Podemos ver o filme como uma caça ao homem. Há uma deliberada imitação dos noticiários da época, algo até presente no ritmo imposto pela narrativa que não se furta de didaticamente apontar a manipulação que os diferentes tipos de poder (político, militar, mediático) praticam. Para evitar aquilo que poderia ser um romance óbvio noutro filme, Robert Wise só enquadra Klaatu e Helen juntos em ocasiões de perigo como a perseguição ou o instante que dá nome ao filme. Mas percamos tempo com Helen, a única personagem a quem Klaatu revela a verdade.

Viúva e mãe de um rapaz, o filme de Helen é outro. À medida que Klaatu lança o ultimato, toda a multidão na assistência, de militares a cientistas, vai lentamente passando da dúvida ao temor. Helen não partilha esse sentimento. Insista-se, a história dela é outra. Não sabemos que sentimentos ainda detém pelo falecido, aliás pouco ouvimos dizer sobre o assunto simultaneamente tão fresco e tão ausente na memória coletiva. Apenas sabemos que é ela a testemunha do bizarro regresso à vida de Klaatu numa cerimónia em que o monstro e o doutor Frankenstein trocaram os papéis. Que sentimento, que recordação, que ideia terá o momento despertado?

 

The Day the Earth Stood Still, de Robert Wise

 

A audiência aterrada enquanto surge o plano singular na cara de Helen, um sorriso que parece soletrar o que outro starman cantaria anos mais tarde: “Knowledge comes with death’s release”. Ignora ou faz por esquecer o discurso, não vê um ícone prateado à sua frente. Nela e neste seu soberbo plano num final que se queria bombástico e atabalhoado, jaz a luz materna que se revela face a uma dialética podre entre belicistas e uma mensagem pacifista. Certo, ainda não será neste mundo nem no outro que estaremos livres, irresponsavelmente livres. O aparato estremece, os visitantes partem. Antes de entrar novamente a música de Herrmann sentenciando a película, ficou perdido no brilho das estrelas este veredicto mais poético. Embalando docemente como uma vocalista que sussurava: “So hold me Mom, in your long arms. So hold me Mom, in your long arms, your petrochemical arms, your military arms, in your electronic arms…”

 

The Day the Earth Stood Still, de Robert Wise

 

Apesar desta nota, “The Day the Earth Stood Still” está ainda focado na mensagem e não na forma. O problema tem de ter solução custe o que custar. Será interessante comparar como outro filme de 1951, “The Man from Planet X” de Edgar Ulmer, coloca a discussão não tanto no plano das ideias, mas no da linguagem. Klaatu era o espelho de um futuro próximo, daí a mesma língua e o mesmo aspecto que traçavam uma projeção desejada no espaço desconhecido. Ao alienígena de X, de aspecto rudimentar quase risível, apenas ouvimos a respiração, a comunicação é praticamente impossível. Logo, a dificuldade no problema da tradução poderá também levar a um inadiável confronto entre mundos.

Se com Robert Wise tínhamos vestígios de um melodrama com planos intimistas e uma profundidade de campo que acalentava a dramaturgia, Edgar Ulmer está mais preocupado em transformar a paisagem escocesa do seu filme num lugar frio e hostil. Este velho mundo não estará tão inclinado para um confronto com o novo, pois tal proposição é simplesmente impossível. Plano após plano a neblina adensa a improbabilidade de comunicação. Portanto, o contacto consistirá numa progressão geométrica à base de ameaças e volte-faces. Ulmer não rejeita a hipótese de boas índoles de parte a parte, apenas mostra que as mesmas são demasiado tíbias e cedo se deixam tentar por um instinto selvagem maior.

 

The Man from Planet X, de Edgar Ulmer

 

Voltando a Robert Wise, o realizador faria mais dois filmes centrados na comunicação entre mundos: o clássico “The Andromeda Strain” (1971) e o improvável “Star Trek: The Motion Picture” (1979). Ambos apresentam a ciência e não o Homem como o interlocutor com o desconhecido. O melodrama dos fifties, em que o extraterrestre podia estar ao virar da esquina, deu lugar à racionalização laboratorial dos seventies, em que a lógica dita que o primeiro contacto alienígena não será com homenzinhos verdes, mas com nuvens e micróbios por decifrar. Klaatu já não seria o peregrino, estaria, antes, plenamente integrado, a trocar impressões com Helen na sala de investigações.

Sem abdicar do habitual pragmatismo nas suas hábeis composições, a nova era traria um Wise mais directo e também mais seco. Como um metrónomo, a sua direção vincaria os limites da frase sem permitir distrações. Embrenhado por um espírito de funcionalidade, as personagens interagem por monitores. O diálogo, secundário, teria a mesma importância que um relatório para efeitos protocolares. Logo, e é aqui que reside a maestria de Wise, cada imagem seria uma hipótese, um facto, um elemento crucial na investigação.

 

The Andromeda Strain, de Robert Wise

 

Star Trek: The Motion Picture, de Robert Wise

 

Chegados ao futuro, continuamos a ter os mesmos problemas de comunicação. Nem o rigor da ação e as repetições cena após cena em “The Andromeda Strain” conseguem ultrapassar o pânico que algo incontrolável despoleta. Até a lógica do Mr. Spock, na sua ânsia pelo conhecimento total, acaba beliscada por não entender que atrás de uma ordem apática e telegráfica se esconde uma mimosa vontade em regressar a casa.

Sempre o espaço, tão vasto quanto incompreensível. E nós, fechados neste berlinde azul, há muito sem problemas para resolver, sem mistério, sem maravilhoso. Porém, há qualquer coisa que ainda não apanhámos… Bastaria dizer eppur si muove, mas há ainda algo mais que ou se vê ou se não vê, quase como o salmo que dizia “Sem linguagem, sem fala, ouvem-se as suas vozes”.

 

 

Eduardo Magalhães