O Legado do Cineasta: “The Brutalist” como afirmação artística

Hugo DinisJaneiro 23, 2025

Tendemos a ver o cinema como uma forma de colocar a mitologia ao serviço da lembrança colectiva. A memória dos tempos permanece consolidada e até grudada em torno destes artefactos culturais fílmicos, de tal forma que organizamos o nosso imaginário colectivo com base no filme, na música e na criação dos tempos. Esta preocupação com o legado do cineasta tem levado a uma certa proliferação de cinema auto-reflexivo em torno do conceito de herança cultural (Oh Canada de Schrader, The Shrouds de Cronenberg, Dolor y Gloria de Almodóvar, ou Megalopolis de Coppola são disso bons exemplos, com diferentes graus de sucesso): chamemos a este fenómeno a Fabelmanização em curso. Contudo, a necessidade de assertividade cultural só poderá surgir como consequência da urgência da afirmação. O legado de Coppola, por exemplo, não é a magnitude das suas produções, mas antes aquilo que o próprio sentiu necessidade de afirmar com elas. Brady Corbet é um tanto jovem para se colocar nesse panteão, muito embora tenha feito boa parte dos seus trabalhos à data com vista para a criação de uma afirmação artística com A maiúsculo.

 

 

The Brutalist, o último filme de Corbet, é um épico sobre arquitectura. Ou sobre a imigração judaica da Europa para os Estados Unidos no pós-Grande Guerra. Ou sobre relações de poder no contexto de assimetrias sociais, ao estilo de Fitzgerald. Ou, na realidade, é tudo isto ou até nada disto. Muito embora habite o mundo da arquitectura, Corbet segue-o sobretudo como esteta na procura de imagens e composições atraentes, mas não de verdadeiro significado temático. E ainda que The Brutalist acompanhe a viagem que leva Adrien Brody até ao Novo Mundo, a sua condição de imigrante judeu serve sobretudo como escape para a sua pena própria ou autofagia. E não obstante a sua relação com o poderoso Harrison Van Buren (Guy Pearce) esteja sempre ancorada numa clivagem de poder social e material, esta surge mais como motivo implícito e não explícito para o universo de Corbet.

 

 

De facto, The Brutalist constitui na sua aparência uma vitória da seriedade, um filme sisudo que levanta temas sisudos ao som de uma banda sonora plena de paisagens sónicas dissonantes. Adrien Brody é um arquitecto brutalista cujo brilhantismo ficou perdido na cortina da desumanização da guerra, como perdido ficou o remanescente da sua família na Europa quando Brody fez a travessia rumo à América. Muito embora a primeira metade de The Brutalist fique marcada pelo episódio em que o filho de Guy Pearce contrata e depois se recusa a pagar à empresa de mobiliário de Brody e do seu primo pela construção de uma biblioteca pessoal, o filme funciona muito mais como uma série de episódios desconexos do que enquanto documento coerente. Aqui estará a base da condição futura de Brody: a descoberta do seu passado profissional atrai a admiração alheia e é convocado por Guy Pearce para ser simultaneamente o ideólogo de um novo e ambicioso projecto arquitectónico e o seu novo assalariado num mundo de outros subalternos, ainda que destes não ouçamos em The Brutalist. Pearce não faz, com efeito, um Gatsby particularmente misterioso e Corbet não está em nenhum momento interessado em construir a sua personagem, servindo o contacto de Brody com Pearce sobretudo como signo totemístico do abuso de poder atavístico dos Van Burens.

A introdução da personagem de Felicity Jones, na segunda metade do filme, enquanto mulher do arquitecto titular confere a The Brutalist um novo elemento em torno das relações de poder marital e de um drama familiar mais convencional. É aqui que julgo que Corbet acaba por encontrar o contexto episódico que melhor se adapta ao estilo narrativo de The Brutalist. Para Corbet, Jones e Brody não são uma fábula de encantar, mas antes um casal idiossincrático, cuja relação é ferida pela distância e a ausência. Embora sub-explorado, este rejeitar da convencionalidade narrativa na relação entre ambos garante uma ancoragem das incidências que mais tarde parece traída pelos desenvolvimentos. Com efeito, o episódio de Carrara, com a viagem de Brody e Pearce a Itália, marca mais uma revolução num argumento que a este ponto já parece quase pensado no momento. A artificialidade das ocorrências neste acto final acaba por servir, de facto, como derradeira dissociação junto do espectador.

 

 

Chegamos ao fim de The Brutalist à procura de tematização e significado. As agruras de Brody enquanto imigrante, ancoradas pela sua relação com Pearce, viraram-se em vários prismas distintos na imaginação de Corbet: seja no paradigma do abuso de substâncias, seja na desassociação cultural, seja na ruptura e persistência da sua relação matrimonial com Jones, seja na afirmação das crenças religiosas de Brody, seja até na reflexão artística da relação entre criador e legado. As ideias lançadas parecem ser menos exploradas mais por desígnio do que por acaso: não descobrindo profundidade em nenhuma delas, Corbet prefere inundar a tela e o espectador com maximalismo formalista e projecções de seriedade narrativa. Esta sopa de significados remete sobretudo para uma certa ausência de urgência na condição do narrador. Corbet tem muito a mostrar, mas pouco para realmente dizer.

 

Hugo Dinis