Jeff Nichols de regresso às salas, quase oito anos após o seu último filme – e mais de dez desde o seu último filme relevante, quando era ainda uma “nova voz emergente” no cinema americano. Para quem não chegou a ver os filmes de Nichols desde Take Shelter ou Mud (que é o caso deste vosso escriba), The Bikeriders parece-nos um bom ponto de partida para uma nova descoberta sua obra – mas nem tanto, infelizmente, um triunfo artístico para o realizador (como retrospectivamente não o eram, talvez, esses “importantes” filmes do começo da sua carreira). Um exercício de enquadramento de mitologia do século XX, Nichols trabalha o filme em dois registos distintos (de um ponto de vista cinematográfico, narrativo e estético), que se desdobram dificilmente a partir de um singular conceito de base.
The Bikeriders é livremente adaptado (ou inspirado) do livro de fotografia de Danny Lyon com o mesmo nome, publicado em 1968. Lyon seguira os Chicago Outlaws Motorcycle Club entre 1963 e 1967, e relata, de uma forma crua e realista, a história das pessoas ou personagens que pertenciam a esse gangue à margem da sociedade. No filme, os “Outlaws” tornam-se os “Vandals” e é seguindo essa mesma liberdade criativa que Nichols romanceia um retrato (em aparência) autêntico e pessoal de “outras” personagens imaginadas a partir das imagens do livro. A descrição de uma época e de um lugar, daqueles rostos e corpos, é feita com uma prodigiosa atenção ao detalhe. E quando Nichols decide enfim, no genérico final, mostrar as imagens reais do referido livro, parece quase pedir ao espectador que identifique as personagens que criou nessa realidade, a partir da qual lhes deu forma.
You are an undesirable character. We dont want you.
Nada neste filme irá, contudo, verdadeiramente para além da sua primeira imagem, com Benny (Austin Butler) sentado ao balcão de um bar, integralmente “fardado” de Vandal, a beber um whisky. Nos seus momentos mais interessantes, The Bikeriders é o retrato sedutor e envolvente de uma época e de um estilo. Uma evocação nostálgica de uma ideia de liberdade e rebeldia, transportando consigo o discurso icónico de Peter Fonda, enquanto Heavenly Blues, no The Wild Angels : “We wanna be free! We wanna be free to do what we wanna do. We wanna be free to ride! We wanna be free to ride our machines without being hassled by The Man”. Mas será essa mesma liberdade que Nichols, muito infelizmente, não saberá encontrar aqui pela sua própria mão.
Benny, mortalmente cool, será expulso do bar e espancado por dois homens que não querem ver as suas “colours” por aqueles lados. Abusando de frequentes citações a Scorsese, a cena será abruptamente (e in extremis) cortada pela voz de Kathy – a mulher de Benny, sabe-lo-emos rapidamente – cujo discurso será, a partir de então, o fio condutor da trama do filme. Kathy (Jodie Comer) é-nos apresentada numa lavandaria, em companhia das suas “girlfriends”, enquanto, sendo entrevistada por Danny (Mike Faist), nos conta algumas das personagens e episódios da narrativa. A circunstância e sua banalidade, o asseio e suas cores, serão em tudo distintos de Benny – e nisso os (algo simplistas) traços identitários de uma american housewife gone bad. Um recorrente contraste estético (e narrativo) desse quadro com o mundo dos Vandals, que o filme nunca saberá efectivamente trabalhar. Para Nichols, é evidente, a ideia será não apenas imaginar e filmar as imagens e palavras do livro, mas imaginar e filmar a génese do livro – descobrir aquelas personagens ao momento da fotografia de Lyon. De um ponto de vista mais concreto, podemos ver em Kathy o primeiro (e derradeiro) grande filtro das imagens do filme – um sistemático elemento neutralizador da sua potencial violência. Mas para o espectador, Kathy será sobretudo a estranha (ou falsa) personagem principal de um filme que, afinal, apenas existe, quando esta não domina a cena.
Narrativas pouco paralelas – os relatos de Kathy e os episódios em torno dos Vandals – The Bikeriders resiste pelo sincero interesse que Nichols dedica ao seu gangue ficcionado. Em oposição a Kathy, e provavelmente dado o respeito de Nichols pela obra de Lyon : Benny, Johnny, Zipco, Brucie, ou Cockroach parecem de facto existir enquanto personagens daquela esfera social que sobrevive na recusa de uma sociedade vigente (The Wild One, com Brando, enquanto molde directo de uma identidade). Os motores das suas motos reverberam agressivamente pela tela (defronte do bar na vingança de Benny, ou aproximando-se de longe aos olhos do grupo de delinquentes), os seus casacos de cabedal revelam um manifesto contra as paisagens naturais ou rurais em seu torno. Existem momentos de proeza estética em The Bikeriders, mas unicamente quando a câmara se aproxima (e ainda assim algo timidamente) daquelas máquinas e homens, quando o filme se liberta à sua transbordante e rugosa sensualidade masculina, quando as imagens exploram essa ideia de liberdade a “80 miles per hour”. Kathy, por seu lado, é uma personagem que jamais “existe”, uma caricatura sob um horrendo sotaque do Midwest, de quem nada sabemos de facto. Gosta de Benny (“hmm, he’s good bad, but he’s not evil”), por quem abandonou, de uma forma bastante crua (e particularmente desprovida de humor) o seu antigo namorado. Mas os seus dias não existem neste filme, sobretudo os seus dias com Benny.
Nichols parece assumir que o espectador compreenderá, quase espontaneamente, quem e como é Kathy – essa caricatural iteração scorseseana. Mas se a ideia do realizador fora, a partir da sua figura central, estabelecer um equilíbrio tonal, de maior realismo, entre o mundo corrente (que o espectador possa reconhecer ?) e a mitologia motard (esse bando de bums em cabedal), o seu efeito prático é de uma profunda e recorrente contradição entre os dois campos do filme – que apenas serve a infeliz banalização das suas imagens. No mesmo sentido, também os episódios em torno dos Vandals parecem, enfim, sofrer dessa vontade velada de atenuar a força das suas histórias. Sendo fundamental que o espectador se identifique junto de Benny e Johnny (um muito bom Tom Hardy) – os dois grandes valores intra e extra-filme –, o valor transgressivo das duas figuras nunca é explorado para além dos seus aspectos mais superficiais. Uma tímida aceleração sobre uma passadeira, ou um dedinho partido, servirão aqui como a evidência desse histórico flagelo social americano que nos é frequentemente relembrado em texto (“they’re all scared of us”). Para além do impressionante ruído das motas, quase nada daquelas figuras é declarativamente transgressivo – nem impregnado do inerente fetichismo dos seus objectos. Deixando fora de campo o mar de cruzes suásticas que enchiam a iconografia de The Wild Angels (e que seria hoje simplesmente impossível num filme da Universal Pictures), The Bikeriders nunca mergulha na rebelião que vibra em permanência no filme de Corman. E será pelo funeral de Brucie (depois da mais tímida morte por metal jamais filmada) que toda a insolência do lendário gangue de Heavenly Blues nos fará mais falta.
Os primeiros acordes de Out in the Streets das Shangri-Las serão o belíssimo leitmotif do inerente fatalismo do filme – mas o desenlace, algo banal, é-nos literalmente anunciado pela letra da canção. The Bikeriders cumpre, no seu melhor, um exercício adequada e terrivelmente cool. Mas é sobretudo um filme que se retém com rigor na sua mediocridade, para mais comodamente se saber identificado enquanto “bom cinema”. Nichols não é um rebelde, é pena. E pensar que “he used to act bad...”