Durante anos, Pádraic e Colm juntaram-se diariamente, às 14h, para beber umas pints de Guinness no único pub da ilha de Inisherin. Por volta dessa hora mais um dia se afigurava perfeito para o alegre, inocente e acomodado Pádraic, enquanto se encaminhava para a casa do seu grande amigo. Longe estava ele de saber não só que este ritual basilar não iria ter lugar, mas também que Colm tomara a decisão de nunca mais lhe falar. Quando Colm declara, com toda a seriedade, que já não gosta de Pádraic, lança inadvertidamente as sementes de uma destruição de magnitude imprevisível e de efeitos nefastos… Entretanto, ouvem-se bombas na ilha maior. O ano é 1923 e a Irlanda está em guerra civil.
“The Banshees of Inisherin” é um filme de falência. Falência de relações, de comunicação, de inocência e de paz. Mais do que perguntar, como muito se tem escrito, qual é o valor da simpatia, ou de debater se é mais importante ser simpático ou ser recordado, este é um filme interessado em explorar as razões pelas quais guerreamos. Em discutir o conflito, e os seus efeitos, em todas as dimensões. Ter a guerra civil irlandesa apenas em pano de fundo, num lugar fantasmagórico, permite duas coisas: deixar claro que estamos a falar de mais do que uma zanga absurdista entre dois amigos, mas também evitar que o peso da História se coloque no caminho da universalidade. Quer isto dizer: se a ação decorresse nas ruas de Dublin ou Belfast, seria apenas sobre esse evento histórico. Se escolhesse ligar, de forma mais direta, o que acontece em Inisherin ao que aconteceu na guerra civil, seria uma alegoria apenas para esse evento, e não uma representação geral da essência de qualquer conflito, como quer ser. A ambiguidade e o desprendimento entre os dois planos de realidade são, portanto, cruciais.
Ao estabelecer muito cedo o conflito central, o guião de “Banshees” dispõe de tempo e espaço para nos enredar nas dinâmicas dos confrontos pessoais e interpessoais, dos ideais e dos modos de vida que permeiam a narrativa. Deixa-nos respirar o mesmo ar das personagens, sentir as suas dores e confusões, numa opacidade comum. Também a câmara se deixa ficar, lânguida, em planos predominantemente fixos, facilitando, por um lado, o nosso mergulho no microcosmos de Inisherin e, por outro, a descodificação da simbologia visual que vai surgindo. O ritmo lento é, neste caso, um auxiliar e não um detrator: é através da aparente inação, da repetição de falas e situações, bem como da demora, que nos é possível ir juntando as peças que nos informam dos diferentes níveis em que a narrativa opera. Destes expedientes retiramos notas importantes sobre a comunidade da ilha – fechada, conservadora, católica, coscuvilheira e agressiva – e também sobre as personagens – reprimidas, frustradas, sem ferramentas para comunicar ou apreender convenientemente as emoções. É neste caldo que fermenta o conflito.
Com pouco ou nada para fazer, e sem capacidade para lidar com aflições pessoais, Colm entende que o corte com Pádraic (que vê como alguém inferior) é a única forma de fazer algo de significativo com o tempo que lhe resta. Escolhe ser lembrado, em vez de amado. A glória, em vez da harmonia. Pádraic, que tem as mesmas lacunas emocionais, vê a sua vida desintegrar-se progressivamente, à medida que os elementos que serviam de chão a um contentamento tão absoluto quanto frágil vão desaparecendo. É um homem levado ao limite, que chega ao fim revoltado e sem nada a perder. Também as outras personagens apresentam características passíveis de estabelecer arquétipos para os envolvidos numa guerra: Dominic – os mais fragilizados e indefesos, a carne para canhão; Siobhán – os intelectuais, racionais e cuidadores, para os quais um conflito irracional ou uma sociedade fechada não têm lugar; Peadar – a força bruta, a autoridade que se imiscui no conflito, imbuída de violência e impulsos mercenários (olá, Reino Unido); e Jenny (a burrinha anã) – a inocência que se perde.
O que começa como uma pequena querela entre dois indivíduos, inflexíveis nas suas convicções, acaba por envolver todos os outros, à medida que a espiral de destruição (e autodestruição) vai escalando. Tal e qual o que acontece quando duas fações com objetivos antagónicos deixam de conseguir negociar… No fundamental, o que separa Pádraic e Colm não é particularmente diferente do que separava os irlandeses, em 1923. É isto que “Banshees” compreende bem. Que quando dois sistemas com objetivos distintos colidem, tanto faz que se tratem de dois indivíduos, duas milícias armadas, dois ecossistemas ou dois corpos celestes. Se não encontrarem condições de adaptação para se contornarem (ou complementarem), concorrem, gerando entropia para si próprios, para o outro, e para o meio que os rodeia, até que um, ou ambos, colapsem. As bombas que ouvimos rebentar periodicamente, durante o filme, são muito menos um dispositivo de realce da alienação da comunidade de Inisherin e muito mais um lembrete para nós, espectadores, desta universalidade essencial do conflito. São elas o verdadeiro grito de banshee (a figura mitológica que dá título ao filme) a anunciar a morte de amizades, laços familiares e harmonia social; a recordar os dilemas tão irresolúveis, quanto inescapáveis, que regem as relações humanas.
Ao quarto filme, Martin McDonagh parece ter reconfigurado as suas prioridades enquanto escritor. Aqui não é o estilo da sua escrita (que é o mesmo que dizer o próprio autor) que está em primeiro lugar, mas sim uma exploração temática, para a qual todos os elementos narrativos confluem. A “tarantinização” dos diálogos e das personagens, que tantos elogios lhe foi valendo, é trocada por uma ambiguidade permanente, que pede a ajuda do espectador na construção de significado. Este soltar de rédea narrativo é tão valioso pela forma como sacia os que o absorvem pela trama, as dinâmicas relacionais e os diálogos inusitados, como pelo apetite voraz que abre aos que o querem ler nas entrelinhas. Se isto não faz de “The Banshees of Inisherin” um filme tão imediatamente apreciável como “In Bruges” ou “Three Billboards Outside Ebbing, Missouri“, fará dele, certamente, um filme mais corajoso.