Há em The Assessment um pouco de Ex Machina, e não é apenas por causa de Alicia Vikander (embora, claro, também). A arquitectura depurada, as linhas limpas, a distopia, a frieza e a tensão contida mostram que Fleur Fortuné bebeu do cálice de Alex Garland. É ficção científica num futuro próximo, plausível ao ponto de inquietar.
A premissa é simples e, fiel à sua natureza distópica, sombria: o colapso climático tornou grande parte da Terra inabitável, e a última zona viável foi selada para uma minoria privilegiada. Lá dentro, nem sequer a reprodução é livre. Ter filhos exige aprovação do governo. Essa autorização é dada (ou recusada) depois de uma avaliação intensiva: durante sete dias, um auditor independente é responsável por decidir se cada casal inscrito está apto à parentalidade. Uma parentalidade compatível com a fragilidade e a artificialidade do mundo que sobrou.
É neste contexto que uma auditora chega para avaliar Mia (Elizabeth Olsen) e Aaryan (Himesh Patel). Ambos são cidadãos de elite: ele é um bioengenheiro que tenta recriar vida animal em formato virtual; ela é botânica e dedica-se a cultivar plantas comestíveis numa estufa doméstica. Cultivam vida (quer real, quer virtual) porque sabem o quão frágil ela se tornou num mundo que exige ordem, regras, e controlo sobre qualquer espécie de espontaneidade biológica. Falta-lhes cultivar a vida que mais desejam, a de um filho. Estão confiantes de que passarão a avaliação sem dificuldades. Afinal, representam uma nova aristocracia emocional: são progressistas, competentes, ecologicamente conscientes, porém demasiado confiantes na sua própria capacidade de ‘fazer tudo bem’. Só que o processo é tudo menos pura burocracia (que, não deixando de ser intimidante, tem pelo menos o seu quê de previsibilidade, parâmetros, objetivos, prazos, coisas mensuráveis). É uma avaliação que se estende por uma semana, durante a qual a auditora vai viver sob o mesmo tecto que o casal e analisar o seu dia-a-dia, do mais trivial ao mais íntimo, para garantir que está ali uma boa versão beta de uma família feliz. E, para este casal, essa auditora é Virginia (Alicia Vikander).
A perturbadora, imprevisível Virginia. Ao princípio, rígida ao ponto de roçar o robótico (mais uma piscadela a Ex Machina). Mas, passado pouco tempo, rasga com o expectável ao encarnar, numa simulação sui generis, a filha que o casal poderá vir a ter. Virginia alterna entre juíza e bebé inconsolável e birrenta, revelando com isso o abismo entre o ideal da casa domo de Mia e Aaryan e a desordem que habita o núcleo do casal. Parece estranho, e ainda o é mais quando se vê. Chega a ser difícil distinguir o que faz parte do teste e o que é apenas Virginia, a sua persona normal.
É essa mesma ambiguidade que sustém o filme. Revelar mais do que isto seria trair a experiência de quem ainda não viu The Assessment.
Esta é a primeira longa-metragem de Fleur Fortuné, mas ninguém diria. A realizadora sabe que estética e que atmosfera quer para o seu filme. Cada plano tem uma intenção. A preferência por uma mise-en-scéne contida (mais chamber piece do que distopia de grande orçamento) ajuda a manter o foco emocional no que o casal sente, fugindo (e bem) à sobre-exposição do mundo em que vivem. Não há monólogos explicativos, nem cronologias do colapso ambiental. O filme acerta ao manter o world-building discreto, já que o processo que Mia e Aaryan enfrentam para se provarem a uma estranha basta para nos prender.
As interpretações são fundamentais num filme ancorado em apenas três personagens. Tudo repousa sobre a forma como estes três corpos ocupam o espaço, como se olham, como denunciam emoções com pequenos gestos. E nesse campo, ninguém desilude. Vikander mergulha de cabeça no papel da bizarra auditora, sem medo do incómodo. A sua fisicalidade (herança da dança, que praticou na Suécia até aos 19 anos), reforça a ambiguidade de Virginia: por vezes maquiavélica, por vezes infantil, nunca menos do que desconcertante. Olsen vai revelando as rachas por detrás da serenidade aparente da sua personagem, enquanto oferece o contraponto necessário à estranheza de Vikander. E Patel constrói um “pai ideal” com uma doçura que, por vezes, se aproxima perigosamente da ingenuidade.
O filme tropeça um pouco no terceiro acto. Sai do registo intimista para algo mais amplo e um tanto desorganizado. Começa a insinuar questões sobre o mundo exterior quando já não tem tempo para lhes dar resposta. Parte da tensão, construída com tanto cuidado até aí, dissipa-se.
O tropeção final não apaga o mais importante: The Assessment merece ser descoberto. Em Portugal, foi directo para streaming, sem estreia em sala, o que é pena. É um filme pequeno, mas com ideias grandes; provocador, elegante e inquietante. Convida à reflexão não só sobre parentalidade, mas sobre intimidade e o nosso lugar num planeta em colapso. A pergunta que Fortuné coloca é directa, mas profunda: qual é o preço de trazer uma criança para este futuro falido?