Sangue na Neve: O Natal e o Cinema de Terror

Carla RodriguesDezembro 20, 2024

Ah, o Natal. Esta época repleta de calor humano, doces, luzes cintilantes, e pinheirinhos decorados. Quando nos deparamos com um bolo-rei e um prato de bacalhau cozido, dificilmente imaginamos cenários pavorosos, criaturas sobrenaturais e assassinos psicopatas. Ou melhor, em princípio, não deveríamos. Contudo, o Natal e a sua simbologia sempre foram terrenos férteis para as imaginações mais abençoadamente distorcidas. E essa distorção não surge por acaso. Vale a pena lembrar que o Natal, antes de se tornar uma celebração de meiguice e inocência, tem nas suas raízes histórias de punição e monstros, que coexistem com o mito acolhedor de São Nicolau.

Antes de se transformar na celebração de consumismo e reencontros calorosos que nos é familiar hoje, o Natal era marcado por tradições folclóricas pontuadas por elementos assustadores. Pense-se no Krampus, a figura demoníaca da mitologia alemã e escandinava, com chifres e cascos de bode, que, em dezembro, se encarregava de castigar as crianças mal comportadas.

 

Terror natalício - Krampus
Krampus

 

Na Inglaterra vitoriana, um dos passatempos familiares favoritos na véspera de Natal era contar histórias de fantasmas e espectros à lareira. Na literatura, o clássico Um Conto de Natal, de Dickens, perpetua esta tradição, mergulhando com gosto no macabro. Com as suas visitas fantasmagóricas e ajustes de contas morais, o livro relembra a base de boa parte da mitologia natalícia: se fores bonzinho, és recompensado; se fores maroto, és castigado. Não é, portanto, de estranhar que os contornos mais sombrios da temporada tenham continuado a evoluir ao longo do tempo, saltando dos contos à lareira e da literatura para o cinema.

 

Terror natalício - A Christmas Carol
A Christmas Carol

 

No cinema, e especialmente a partir dos anos 70, houve uma avalanche de filmes de terror feitos propositadamente para feriados e datas especiais, desde Halloween (1978), Mardi Gras Massacre (1978), New Year’s Evil (1980), My Bloody Valentine (1981) até April Fool’s Day (1986). Os filmes de terror natalício encaixavam perfeitamente neste contexto, e proliferaram, à medida que os realizadores procuraram subverter celebrações tradicionais. As pressões económicas e sociais da quadra —consumismo desenfreado, tensões familiares e expectativas sufocantes de felicidade perfeita — revelaram-se um terreno fértil para os cineastas do género.

Um dos primeiros filmes de puro terror natalício – e provavelmente o melhor – foi o clássico slasher de Bob Clark, Black Christmas (1974), frequentemente considerado um precursor de Halloween. Passado numa casa de irmandade universitária durante a época festiva, Black Christmas contrapõe a estética cintilante do Natal com a história de um stalker homicida que aterroriza um grupo de mulheres. A influência de Black Christmas deve-se tanto ao seu papel pioneiro no subgénero slasher (foi um dos primeiros slashers a usar o POV do assassino como mecanismo narrativo), como às suas personagens e ao seu subtexto. As raparigas da irmandade rompem com o estereótipo açucarado frequentemente associado às protagonistas femininas em filmes de Natal: elas bebem, têm relações sexuais, são determinadas e resistentes. O filme tem uma veia cínica que pulsa pela narrativa e transmite a sensação de que, sob a fachada da alegria natalícia, se pode esconder uma realidade perturbadora e imprevisível. Mas apesar da atmosfera perfeita que as decorações e convívios natalícios prestam a este filme, ainda não se encontram aqui grandes deturpações da iconografia da época.

 

Terror natalício - Black Christmas
Black Christmas, de Bob Clark (1974) 

 

Nos anos 80, o subgénero slasher já havia solidificado o seu lugar no cinema, ainda que continuasse a ser alvo de controvérsia e demonização. Durante o período de pânico moral conhecido como a era dos video nasties — em que filmes de terror foram acusados de corromper a juventude e ameaçar os pilares da decência social — o terror festivo escapou, em grande parte, ao escrutínio direto. Porém, alguns dos slashers natalícios mais notórios acabaram por ser apanhados na maré de indignação pública. Um dos casos mais célebres foi Silent Night, Deadly Night (1984), um filme que rapidamente se tornou o epicentro de uma polémica feroz devido à sua representação de um Pai Natal assassino – uma subversão explícita do símbolo mais querido da quadra natalícia. O Pai Natal — tradicionalmente um ícone de generosidade e inocência — transforma-se numa figura de terror, que provocou reações furiosas tanto de grupos parentais quanto de críticos de cinema (como Gene Siskel). Silent Night, Deadly Night apresenta-nos Billy, um jovem traumatizado, que, envergando um traje de Pai Natal, embarca numa matança impelida pelo seu distorcido sentido de justiça (matar os marotos, poupar os bonzinhos). Numa primeira leitura, a premissa pode parecer um exercício sensacionalista típico dos anos 80, mas, a partir deste conceito simples o filme acaba por tocar em ansiedades mais profundas sobre a perda da inocência infantil, a metastização de traumas não resolvidos e a mercantilização do Natal. Embora não tenha sido classificado como video nasty, a reação pública foi tão intensa que o filme foi retirado das salas uma semana após o seu lançamento. O ultraje — alimentado por grupos de protesto e pais preocupados, cujos filhos alegadamente não conseguiam dormir depois de verem a figura do Pai Natal com um machado — espelhou o tipo de histeria que rodeava filmes mais extremos, como The Driller Killer ou I Spit on Your Grave. No entanto, como tantas vezes acontece no mundo do cinema de terror, a controvérsia só aumentou a notoriedade do filme. Com apenas uma semana em cartaz, Silent Night, Deadly Night gerou lucro suficiente para justificar várias sequelas (que variam entre o medíocre e o desastroso) e garantiu o seu lugar no panteão dos clássicos série B de culto.

 

Terror natalício - Silent Night Deadly Night
Silent Night Deadly Night, de Charles E. Sellier Jr. (1984)

 

Antes de Silent Night, Deadly Night, já Christmas Evil (1980) tinha explorado as trevas do Natal alimentadas pelo consumismo. Com uma abordagem mais subtil e inclinada para o terror psicológico, o filme conta a história de Harry Stadling, um trabalhador de uma fábrica de brinquedos que se torna perigosamente obcecado em personificar o Pai Natal, com todas as suas idiossincrasias e valores mas com uma pitada extra de doença mental. Longe de ser um slasher convencional, é antes um estudo de personagem que retrata a desintegração de um homem sob o peso das expectativas sociais e pessoais, particularmente aquelas exacerbadas pela pressão da época natalícia. A crítica ao Natal consumista é mordaz, desafia a visão idealizada da festividade. No Reino Unido, o filme foi apreendido e confiscado – mais uma vítima da histeria em torno dos video nasties. Não é por acaso que John Waters elege este filme como o seu favorito de Natal.

Um “primo excêntrico” de Silent Night, Deadly Night é Don’t Open Till Christmas (1984), que subverte a fórmula do “Pai Natal assassino” ao centrar-se num serial killer que persegue, exclusivamente, pessoas vestidas de Pai Natal. O resultado é um filme mergulhado numa atmosfera decadente e suja, repleta de um charme inegavelmente camp, que o torna um dos exemplares mais deliciosamente foleiros do terror natalício dos anos 80. E isso já é dizer muito, considerando que Silent Night, Deadly Night 2 nos brindou com o icónico e absurdamente hilariante “Garbage Day!”—uma das frases mais memoráveis da história do terror série B. Com uma predileção por mortes exageradas e diálogos que beiram o surreal de tão kitsch, Don’t Open Till Christmas transcende a mera mediocridade e atinge o estatuto de clássico do cinema “tão mau que é bom”.

Apesar das reações negativas — ou talvez graças a elas — filmes como estes tiveram o seu sucesso e fizeram o seu caminho até se tornarem obras de culto. Provaram que o público estava disposto a abraçar a subversão das tradições festivas. A partir daí, as comportas abriram-se, e o terror natalício tornou-se um fenómeno cultural, capturando os aspetos mais tenebrosos de uma época frequentemente associada a uma alegria esfuziante.

Depois de um relativo deserto qualitativo nos anos 90 e início dos anos 2000, o terror embrulhado em grinaldas ressurgiu em força, mais versátil do que nunca. Livre das amarras do clássico “homem perturbado vestido de Pai Natal”, este subgénero expandiu-se para incluir de tudo, da sátira a explorações alternativas da mitologia natalícia. Rare Exports: A Christmas Tale (2010), é uma comédia de terror finlandesa que reinventa aquilo que tipicamente conhecemos como Pai Natal, aproximando-o das suas origens mais sinistras e fiéis ao folclore do norte da Europa. O próprio Krampus, a criatura maléfica das lendas alpinas, teve direito a um filme decente em 2015, distribuído pela Universal Pictures e com nomes conhecidos do mainstream como Toni Collette ou Adam Scott. Filmes como Better Watch Out (2016) brincam com as expectativas do público, apresentando-se inicialmente como thrillers convencionais de invasão doméstica, antes de subverterem completamente o género. Até os musicais entraram na onda, como Anna and the Apocalypse (2017), onde uma jovem finalista de secundário enfrenta uma praga zombie na sua cidade durante o Natal. Com carnificina, sim, mas canções à mistura.

 

Terror natalício - Anna and the Apocalypse
Anna and the Apocalypse, de John McPhail (2018)

 

Mesmo as entradas mais disparatadas, como Santa’s Slay (2005) – que transforma o Pai Natal num assassino sádico, interpretado pelo wrestler Bill Goldberg – ou, mais recentemente, o splatterfest de Terrifier 3, servem um propósito. Estes filmes abraçam o absurdo das suas premissas e mostram-nos que o terror natalício não precisa de ser sempre subversivo. Pode ser apenas uma fonte de diversão ridícula e exagerada, mais um convite a excessos numa época repleta deles.

Porque é que estes filmes continuam a perdurar e a multiplicar-se? Talvez porque o Natal, enquanto fenómeno cultural, é intrinsecamente performativo. A árvore perfeita, o jantar perfeito, os presentes perfeitos — é tudo uma fantasia construída, que muitas pessoas sentem a obrigação de manter, mesmo quando a realidade não corresponde às expectativas. Os filmes de terror festivos exploram esta tensão e transformam a familiaridade reconfortante da época em algo estranho e inquietante. Ao pegar numa celebração sinónima de felicidade, família e altruísmo e injetar-lhe terror, os realizadores obrigam-nos a confrontar as falhas na fachada cuidadosamente construída da alegria natalícia. Reconhecem, também, que o Natal não é igual para todos – pode, para alguns, ser uma época dada à solidão, à dor, ao negrume, à amargura.

Desde que Black Christmas redefiniu as convenções do terror nos anos 70 até a pérolas modernas como Rare Exports e Terrifier 3, o terror natalício cresceu como um subgénero robusto. Lembra-nos que, enquanto a quadra traz risos e luz, também vem acompanhada de expectativas e ansiedades. Quer sejam vistos como um escape distorcido ou um contraprograma catártico às rom-coms festivas delico-doces, os filmes de terror natalício continuam a ser um artefacto cultural fascinante. Recordam-nos que, no final, a quadra não é apenas sobre alegria e boa vontade — é também sobre enfrentar a escuridão com criatividade e uma certa dose de determinação. E, talvez, um prato de rabanadas.

 

Carla Rodrigues