Tár: Onikakushi-hen

Na língua japonesa, em semelhança com o termo kamikakushi (escondido por kami – escondido por deuses), celebremente traduzido como “spirited away” – desaparecido; podemos também encontrar onikakushi, neste caso, escondido – ou desaparecido – por demónios.

O leitor pôde fazer este exercício ao longo do último mês, agora mesmo, ou, desconfio, em qualquer momento. Se visitar um fórum aberto de opiniões ou inputs sobre o filme Tár (2022), como a rede social Letterboxd ou outros produtos semelhantes, encontrará coisas curiosas – isto se não encontrar, como uma vez escreveu José Rodrigues dos Santos, “coisas de grande gravidade”. Para além dos comentários habituais com muitos likes, com sentenças decisivas e humorísticas sobre o filme, ou ponderações vitais acerca da sexualidade de Cate Blanchett, pareceres que farão com que outros utilizadores em resposta condenem o autor a algo a que chamam “horny jail”, encontramos longas tiradas, algumas muito agradadas, outras nem tanto, sobre um filme e a sua protagonista. Uma protagonista que, neste filme com a força e a caracterização de um biopic (Lydia Tár ganhou um Emmy, um Grammy, um Oscar e um Tony, só que não existe! – leu-se num cabeçalho), é o furacão no centro de um profundo estudo de personagem. Um estudo sobre as acções e as suas consequências. Sobre o poder e as relações intimamente enredadas ao poder. Sobre a arte e o artista, e se uma das partes pode subsistir sem a outra. Um filme que é complicado, denso (um utilizador relatou que, durante o seu visionamento, esteve “pensando muitos pensamentos”), mas que nem por isso está desprovido de uma consciência cómica, satírica – assim dir-se-ia que prova o final – de assuntos muito reais: a ética e a moral nos nossos relacionamentos, a queda de graça numa carreira construída pelo narcisismo, e por exemplo, a cancel culture, tema preponderante em Tár, sendo essa precisamente a sua premissa: Tár é uma maestrina de sucesso na Orquestra de Berlim que vê a sua vida desmoronar-se à sua volta por efeito de ações passadas que transfiguram a sua percepção na esfera pública. Não será por menos: uma sinopse oficial da distribuição arrisca – “O resultado é uma abrasadora análise do poder e do seu impacto e durabilidade na sociedade contemporânea.”

Tudo isto parece muito interessante. No entanto, não é muito claro de onde originaram ou reverberam estas constatações. No filme, ruídos e tinidos de proveniência incerta atormentam Lydia. O que quer que todas estas pessoas tenham visto, penso não ter sido bem aquilo que estreou este Fevereiro, em Portugal. O caso é muito, muito estranho. Todd Field realizou a manobra perfeita, sem testemunhas: o filme é um edifício alto, brilhante ao sol do reconhecimento, ao sol da publicidade (pensemos em La Défense, ou nos hotéis da avenida José Malhoa), e as suas sombras, do lado de trás, são densas quanto mais faiscante o sol zenital; e nós podemos olhar para cima, para o prédio, ou vaguear até ao lado escuro da fachada, distraídos talvez – as traseiras do edifício estão “em obras”: é possível cair. O que está lá em baixo é muito pouco claro.

Em certos empreendimentos vinícolas, existe a técnica, para impedir o ataque às vinhas por algumas aves mais agressivas, de se colocarem ossos ou miudezas de galinha em postes visíveis, como foco de atenção. Encontramos neste filme algo semelhante, como nas hortas encontramos armadilhas caseiras em fundos de garrafa de plástico, destinadas à vespa asiática ou europeia, ou nos pomares os CD-ROMs reluzem pendurados nos ramos das árvores, para espantar os pássaros. Numa aula do conservatório, um aluno, “enquanto pessoa BIPOC pangénero”, demarca-se da música de Johann Sebastian Bach, e Lydia Tár dá-lhe uma longa descasca. O aluno reforça a sua posição abandonando a sala. Um utilizador do Letterboxd diz-nos: “separar a obra do autor (…) é bem perigoso, pois todo caso deve ser analisado”, e não é o único a pensar assim, pois a pequena discussão na sala de aula é filmada por outros membros da turma. Mais tarde, esse vídeo volta para morder Tár, com a agravante de ter sido editado, para as redes sociais, de forma a colocar a maestrina a dizer obscenidades insultuosas, agressivas e racistas. “O cancelamento, que é algo que o filme assumidamente faz crítica, é de fato um assunto importante a ser tratado”, diz-nos o nosso colega, assim como outras contas com profile pictures de Isabelle Adjani em Possession. No entanto, o desenlace deste pequeno elemento está mais perto da função excretora de um Youtube Poop do que de qualquer comentário sobre conflito geracional, manipulação do discurso ou impacto da difamação: o vídeo, e este conflito menor instituído pelos indignados, têm no filme a importância de uma nulidade, e Lydia não lhes dá, correctamente, grande atenção.

Nomeadamente porque existem no filme, ao contrário dessas, coisas da maior possível importância e consequência, exigentes da maior atenção, sobretudo por operarem ­à revelia da atenção. E assim, pela primeira vez desde que ensaístas online expuseram em vídeo as suas teorias sobre a relação entre a família e o enxame em Os Pássaros (1963) de Hitchcock, mostram-se úteis os vídeos do tipo Tár explicado!”

 

No labiríntico filme de enigma e terror que é Tár (há dúvidas? Podemos tirá-las no apartamento ao lado, onde Lydia entra com a vizinha numa casa “mais horrível do que a imaginação” – no caso, qualquer ideia que pudesse ter sobre a possível proveniência do tinido polifónico que a incomoda) as cenas apresentam constantes “maus-encaixes”, pormenores de interrogação e, fabulosamente, sugerem-nos para eles, uma e outra vez, respostas macabras e indeléveis.

As cenas – e cada plano, não fossem os travellings estranhos pelas casas da maestrina onde sentimos que alguma coisa está onde não devia estar, resultado provável dos vultos (e quem sabe mais o quê), practicamente invisíveis a olho nu, que estão no ecrã durante fracções de segundo, ou os planos demasiado gerais, sinistramente abertos, que seguem Tár pela orquestra, na casa-de-banho, por exemplo;

Das comichões mais vagas – porque é que, na cena com a sogra, que aparece num único plano, demasiado parecida com Nina Hoss, a filha da Lydia nos conta que está de castigo por “não arrumar” coisas que “já estão arrumadas”? – aos incómodos arrepiantes – se Lydia e a filha ambas viram alguém à porta do quarto, se ambas viram a cabeça para olhar para fora de campo, porque é que a cena acaba? – às questões irreconciliáveis – se a violoncelista se encaminhou para o edifício onde supostamente mora, e alguns segundos depois Tár saiu do carro atrás dela, como é que desapareceu? Correu a esconder-se? – Tár é um filme assombrado para lá do suportável, de um horror pervasivo, subterrâneo, e não por isso menos esmagador. Veja-se a cena onde Lydia entra à força no apartamento da ex-assistente, que desaparece do filme, sem nunca mais ser vista, encontrando apenas anagramas e rabiscos numa sala vazia, e é sem dificuldade que nos podemos lembrar da cena das vivendas em Mulholland Drive (2001), no “coração do labirinto” onde o próprio ecrã começa a tremer, tal é o terror absoluto de que estamos perto, em Tár sempre a sugestão, a possibilidade de as coisas serem muito, muito mais graves do que parecem – um assunto, ou um desafio, entre bruxas, como sugere explicitamente o livro que a amante suicida oferece a Lydia perto do início do filme.

A mesma amante suicida da qual, ao que parece – dizem por aí – a nuca ruiva pode ser avistada na multidão inicial no filme, a suicida que conhecemos exclusivamente através de e-mails descompensados e de quem nunca vemos a cara, excepto numa fotografia com um único olho a descoberto, numa expressão demoníaca.

do vídeo TAR Ending Explained | Full Movie Breakdown, Easter Eggs, Cancel Culture And Hidden Ghosts
A certo ponto no filme, Lydia ouve gritos numa mata enquanto corre;

Na cena do jogging pela floresta, Lydia ouve uma série de gritos, gritos que são tirados do filme O Projecto Blair Witch (1999) trata-se do mesmo clip. Porquê? Ninguém sabe. Circula na Internet uma entrevista ao director de fotografia de Tár, que diz que não está a par do assunto.

The Blair Witch Project (O Projecto Blair Witch, 1999)

Similarmente (e aqui as coisas ficam mesmo interessantes, naquilo que podemos chamar um registo meta) – é impossível, claro, delinear com certeza uma ligação entre Tár e Eyes Wide Shut (De Olhos Bem Fechados, 1999) de Stanley Kubrick, mas o facto é que, nesse filme, Todd Field, o realizador de Tár, interpreta Nick Nightingale, nada mais, nada menos do que o pianista que introduz Tom Cruise, através da informação privilegiada, à noite de pesadelo na sociedade secreta e obscura dos poderosos, onde executa a banda sonora dos seus rituais – de olhos vendados, sempre.

Todd Field é Nick Nightingale, o amigo de faculdade que Tom Cruise reencontra em Eyes Wide Shut (De Olhos Bem Fechados, 1999)
Todd Field, o realizador de Tár, ao fundo, de costas, a tocar para o ritual mascarado;
Em contracampo, Todd – Nick Nightingale, continua a sua peça.

E facto é – soube-se em 2019 numa entrevista, que quem faz a voz da mulher que salva Tom Cruise, sacrificando-se, é Cate Blanchett, dobrando por cima da actriz original.

Cate Blanchett, a actriz de Tár, faz a voz da misteriosa mulher que interrompe o tribunal de condenação a Tom Cruise, sacrificando-se em seu lugar;

Queremos mais? No teaser de TÁR, que está inexplicavelmente cheio de imagens que não aparecem no filme, vislumbramos uma cena onde dois homens abrem a porta para uma sala repleta de pessoas, com uma figura no meio a bater no chão ritmadamente com um bastão… uma cena inexplicavelmente irmã daquela no filme de Kubrick (onde, além de tudo o resto, o compasso também é marcado pela figura central que bate com um bastão).

TÁR – Teaser; disponível no Youtube. Nada sequer parecido está no filme final. Como é que se explica isto?

Aqui entramos na pura sedução conspiracional, e apropriadamente o fazemos. Afinal de contas, Eyes Wide Shut, talvez mais do que os demais de Kubrick, tantos anos depois da sua estreia, não deixou de produzir ricos ensaios sobre coisas como o simbolismo escondido, as referências ocultas às prácticas reais de Hollywood ou, mais relevante para o nosso caso, as intenções subterrâneas, hiper-controladas, de uma realização meticulosa: No início desse filme, duas raparigas prometem a Tom Cruise levá-lo ao “fim do arco-íris”; a loja onde Cruise compra o seu disfarce chama-se “Arco-íris” e, ao longo do filme, invisíveis ao espectador normal, estão espalhadas lens flare com as cores do arco-íris – por exemplo.

Que os dois criadores – Todd Field e Cate Blanchett – de Tár, um filme de uma outra inteligência sinistra e diabólica, repleto de segredos, estejam juntos naquela que é uma das sequências mais misteriosas, mais carregadas da história do cinema, num filme que é ele mesmo, obviamente, de uma enorme suspeita, sugerindo até ao fim que não nos está a dizer toda a verdade, é notável.

Como é notável o engodo de Tár, ou, sendo mais justo, a mestria da sua duplicidade, verdadeiramente, um filme com outro filme, uma obra misteriosa, inteligente, planeada ao pormenor (pensemos na gravação etnográfica da canção que abre o filme). É impressionante que se possa sair do filme satisfeito com conclusões sobre “a natureza de um lugar de poder” ou a “queda” de uma “figura pública”, quando são ao mesmo tempo talvez das coisas mais aborrecidas com que podemos sair desta sala, e se lá estão, se este é mesmo um filme “sobre” alguma coisa que seja – e o quê, para além de uma escadaria ao inferno? – estarão longe de estar escritas num quadro claro, pronto a ser compreendido ou tematizado (TAR, RAT, ART…), mais do que num guardanapo de papel trémulo num bar enegrecido, como aquele que Todd Field entrega a Tom Cruise, com uma palavra ao contrário e um aviso nos lábios.

Rafael Fonseca