Tár: e de Repente, Desaparecer

Tár é um filme total a fazer-se passar por um filme “sobre” alguma coisa. Ao que tudo indica, terá sido bem-sucedido na sua fachada: são os alegados “temas” do filme que têm feito manchete e motivado reacções de aprovação e repulsa. Tár reduzir-se-ia assim a um tipo de objecto cinematográfico raso, o único que Hollywood pode ambicionar produzir na era das redes sociais: mais um fórum global de discussão “sobre” realidades socioculturais que estão na ordem do dia, ilustradas em imagens, e perante as quais cada espectador é convidado a tomar uma posição moral que o distinga dos demais. Seria, em suma, mais um post lançado para o abismo de vozes e rostos de um mundo contemporâneo fascinado consigo mesmo. Tár poderia ser apenas isto, mas há uma rapariga que desaparece no interior de um edifício em ruínas. Há um homem que está a ser observado num restaurante, não se sabe porquê nem por quem. Há uma mulher que se levanta a meio da noite para abrir o frigorífico e acabar com o zumbido que não a deixa dormir

Para que não restem dúvidas, o plano que abre Tár contém a palavra “haunted”. E é na acumulação de signos de terror que o verdadeiro filme se joga. Distribuídos por uma inteligência diabólica, plenamente maquínica – e se a comparação com Kubrick faz algum sentido é aqui, é no modo como este filme nos faz acreditar que não há um milímetro de vida orgânica, nem sequer uma bactéria, nestas superfícies de cristal –, estes signos são também sintomas, isto é, parecem convergir num sentido ruinoso que os deveria explicar – mas sabemos que as coisas mortas não podem adoecer. Porque Tár é um grande filme morto-vivo, nem a performance de Cate Blanchett é “boa” por ser “vivida” – ela é extraordinária por se situar para além de um limiar da presença, isto é, Blanchett não dá vida a Lydia Tár, antes desaparece nela. O próprio título do filme, um apelido que sinalizaria (parodicamente?) a possibilidade de nos encontrarmos perante o mais cansado e inútil dos géneros de cinema, o biopic, é o nome de um desaparecimento fundamental: para haver aqui o “filme de uma vida”, era preciso que a sua matéria mais sumarenta, mais escabrosa – o envolvimento amoroso/sexual de Tár com uma maestrina assistente, que acaba por se suicidar –, fosse explicitamente figurada no seu princípio, meio e fim, o que não sucede: desse acontecimento vital, traumático, só nos chegam ecos, sob a forma morta-viva dos e-mails que se vão acumulando numa caixa de entrada.

Tár não é “sobre” coisa alguma, ou só o é na medida da disponibilidade de cada espectador, porque aqueles que desçam até ao subsolo do filme vão descobrir, em vez de um discurso, uma diversão, um “negativo” parque de atracções, capaz de produzir efeitos de “medo”, específicos de uma época onde o primado electrónico do som – que, contrariamente à visão, é invasivo e inescapável, atravessa as pálpebras de quem quer dormir e as paredes de quem quer conservar o seu segredo – atesta a dissolução da fronteira entre o que é público e o que é privado, entre o que é activo/racional e passivo/patológico. Situamo-nos, importa lembrar, no regime escandaloso da música, onde a visceralidade máxima coincide com a maior das abstracções: uma sinfonia é apenas matemática (“I start the clock”, diz Lydia Tár). Nesse sentido, a explosão dos pecados íntimos de Tár não é prova ou consequência necessária de uma cultura (de “cancelamento”), que aqui estaria a ser louvada ou condenada; ela antes integra uma atmosfera – sonora, visual e afectiva – que sobredetermina a própria esfera humana do cultural, onde se constituem, dia após dia, os diversos “temas fracturantes”. Se se pode dizer que estamos perante um projecto de “crítica”, é preciso acrescentar que o seu alvo não tem ainda nome: é um filme do mal-estar difuso, do atmosférico, do infinitamente pequeno e generalizado, como os fragmentos de plástico recentemente detectados em sangue humano.

Não espanta, por isso, que o momento mais explicitamente político do filme se situe à margem de todos os “temas”, bem longe da cacofonia do primeiro mundo, nesse fabuloso epílogo (alguma vez o cinema americano foi tão “houellebecquiano”?) dedicado a todos os países onde as indústrias culturais do Ocidente despejam os seus resíduos, os seus “cancelados”, os seus “crocodilos”. Ou estará Lydia Tár já num outro mundo, para lá de qualquer fuga/exílio possível? Um mundo de dragões melancólicos, de criaturas demoníacas que são, ao mesmo tempo, demasiado reais para constituírem qualquer coisa de exótico. Sozinha e desaparecida, a maestrina Lydia Tár põe os headphones e prepara-se para activar a intricada relojoaria de uma banda-sonora que não conhece. O espectador de Tár quererá talvez ficar na sala até ao fim dos créditos: o silêncio que se segue ao filme é, também ele, total.

Diogo Ferreira