Críticas a May December, de Todd Haynes

Quatro membros da Tribuna deixam um comentário sobre May December, o novo filme de Todd Haynes, recentemente estreado nas salas de cinema nacionais, recebendo-o com indisfarçável euforia.

 

May December é um filme sobre representação. Um filme sobre uma atriz profissional, Elizabeth (Natalie Portman), e todo um rol de personagens que representam tanto ou mais que ela. Entre elas encontramos Gracie (Julianne Moore). Outrora controversa capa de revista, é hoje uma estimada dona de casa. Conseguiu tornar-se o centro de toda uma comunidade que vive para a agradar. Que alimenta o monstro todos os dias. Moore e Portman interpretam duas mulheres diferentes, mas duas faces da mesma moeda: o facto e a ficção. Elizabeth vai fazer o papel de Gracie num filme biográfico. It’s the moral grey areas that are interesting. O desafio que se lhe apresenta é tremendo: como interpretar uma pessoa que está constantemente a representar?

No meio deste duelo de titãs, apanhado no fogo cruzado, temos Joe (Charles Melton). Um fantasma que leva os seus dias afundado no sofá, ou a cuidar de larvas, ou a obedecer à “swamped” Gracie. Décadas volvidas e Joe continua a ser o rapaz de 13 anos que, como Gracie afirma veemente, seduziu uma mulher de 36 anos. Who was the boss? Who was in charge?

May December figura-se o raro filme de Haynes que não é um filme de época – e, no entanto, a sensação que passa é a de estarmos a assistir a uma história passada. Por mais contemporâneo que seja, este retrato é o da década de 90 e da cultura das revistas cor-de-rosa. Uma história sobre as repercussões geracionais de um crime sexual. É a comédia do ano? Possivelmente. É a tragédia do ano? Sem dúvida.

Pedro Barriga

 

Representações de representações, ante a carcaça exposta de um escândalo. A ameaça de um avassalador despertar… A presença da atriz Elizabeth (Natalie Portman), na pequena comunidade de Savannah, revolve o passado de Gracie (Julianne Moore), objeto da sua interpretação, e do seu marido, Joe (Charles Melton), 20 anos depois de um caso mediático que os envolveu. A sordidez por trás do idílio virá ao de cima, mas apenas na medida da opacidade gerada pelo confronto das performances a que Gracie e Elizabeth se entregam, de corpo e alma. Em “May December”, Todd Haynes volta a avisar-nos que há algo de podre no subúrbio americano. Desta vez (a primeira, desde “Safe”) na contemporaneidade – num mundo pós-vídeo, pós-true crime special -, onde já não basta representar das portas para fora – porque os vizinhos sabem, o país sabe e uma atriz ambiciosa sabe -, a virulência social manifestada no lar suburbano já não acontece por oposição, mas precisamente por consequência de um estádio avançado de amoralidade do sonho americano. Juntando a polida gramática de grandes vultos do medium (Sirk e Bergman à cabeça) ao espírito arruaceiro de enfants terribles do cinema (Fassbinder e John Waters vêm à memória), e não só (o fantasma de Edward Albee também paira por aqui), o cineasta talha uma obra densa e perturbadora. Assente nos gestos, entoações e olhares das personagens femininas, mas também no abrir de olhos de um adolescente cristalizado. Miraculosamente equilibrada entre um guião travesso e uma realização de grande maturidade. Um filme de atores e de personagens que fingem – nessa qualidade, talvez o melhor do ano.

Gil Gonçalves

 

– Do it nicely. It really does matter how it looks.

Imitation of Life. O espelho e o seu duplo. Ou o real para além da mentira. Haynes mergulha na forma televisiva dos anos 90 para evocar Douglas Sirk, num filme que se abisma nas “moral grey areas” da classe média americana.

– She’s everywhere I look. For what ?
– For the movie. So people can see you.

Das imagens e seus reflexos, em May December tudo parece existir em torno de um centro progressivamente ocultado pelas sucessivas camadas de ficção que as personagens evocam e assumem. Do outro lado do espelho, um filme terrivelmente determinado na sua ficção, como se assume Gracie, e nisso uma obra excepcionalmente perturbadora. Representar as coisas como foram, para ver as coisas como são. Nesta “casa de vidro” tudo nos surge afinal opaco pela sua inevitável transparência. Memorial day, cachorros quentes e bolo de ananás, “it’s graduation“. Quadros suburbanos de sonho, poluídos por ruídos atmosféricos esmagadores. Um cocktail de Verão e uma caixa de “s-h-i-t”. A subjectividade factual duma câmara ofuscada pela luz do sol e pelos reflexos infinitos em campo. Sufocante.

DO NOT DUPLICATE

Miguel Allen

 

May December foi uma das principais surpresas do ano de 2023. Não é que Todd Haynes não nos tenha habituado a filmes de bastante valor, mas a forma como o realizador norte-americano subverte o género melodrama, atualizando-o à imagem digital e ao zeitgeist contemporâneo é nada menos que notável. A estética que normalmente associamos a telenovela, com a deliberada manipulação do espectador através da banda-sonora ou de certos movimentos de câmara (zoom), leva-nos a posicionar a obra de Haynes no limiar do camp, sem que com isso haja qualquer resquício de ironia ou desrespeito para com os seus personagens. São muitas as comparações e referências que nos passam pela mente ao visualizar May December (de Douglas Sirk a Persona, de Ingmar Bergman), mas é impossível não nos recordarmos também da série Twin Peaks, com a sua narrativa perturbadora, claustrofóbica e profundamente assente nos códigos do melodrama.

Bruno Victorino