Kenneth Branagh regressa ao universo de Agatha Christie no seu novo filme, A Haunting in Venice. Dois membros da nossa equipa deixam-nos as suas críticas.
Kenneth Branagh chega para o terceiro filme da desempoeirada saga do detective Hercule Poirot, actualmente reformado e a viver um autoimposto exílio em Veneza. Convidado a participar numa séance (sessão espírita) de Halloween num decadente e assombrado Palazzo Veneziano, o célebre detective aceita relutantemente. É quando um dos convidados é assassinado que o detective é empurrado para um sinistro e questionável mundo de sombras e segredos. Ao contrário do Crime no Expresso do Oriente e da Morte no Nilo, Mistério em Veneza recorre menos ao uso do CGI, sendo um filme com mais contenção e menos efeitos visuais do que os seus precedentes visto que Branagh concentra os seus esforços no enquadramento e luz interna, dentro de um espaço singular que é o Palácio, perfazendo uma narrativa mais dark e intensa mas também contando a narrativa com melhores planos e uma montagem mais assertiva. Denota-se mais perícia, um corte com elementos supérfluos e até mesmo mais fúteis mas também um abdicar de luzes e cores característicos das narrativas anteriores. Neste filme há um ambiente muito mais denso e sombrio, uma carga emocional bem mais carregada e um frequente uso e abuso de elementos cliché do terror mas que mesmo assim nos permitem um susto ou outro.
Rita Cadima de Oliveira
Não será fácil atribuir a Kenneth Branagh o talento de um verdadeiro mestre na arte da realização. Contudo, a sua obstinação em manter-se fiel a projetos de paixão (leia-se adaptações de literatura considerada datada e, por vezes, menor), continuando a pensá-los para cinema, merece apreço. Neste terceiro volume da saga do detetive Hercule Poirot, é ainda notável a sua capacidade de afinar a forma e cortar os excessos que marcaram os dois filmes precedentes. Longe do auto deslumbre de um elenco de estrelas, no exaustíssimo “Murder on the Orient Express”, e das diatribes kitsch lavadas a CGI, de “Death on the Nile”, o que encontramos em “A Haunting in Venice” é uma obra ponderada, que troca a frivolidade bem humorada de domingo à tarde pelo ensaio de temas mais sólidos de culpa, dor e ressentimento e que, pela primeira vez, retira o seu Poirot de um pedestal, garantindo-lhe mais humanidade e arco de personagem. A arquitetura do espaço interior – um palácio antigo e decrépito, que alberga crianças desfavorecidas – e exterior – a própria cidade de Veneza – é muito bem aproveitada, através de enquadramentos e montagem inusitados, mas sempre intencionais. Os significantes de cinema de género são introduzidos de forma criteriosa e bem doseada. Tudo para favorecer a atmosfera de terror leve, mas desconcertante, situada algures entre os primeiros filmes de “Harry Potter” (um vulto esvoaçante, numa floresta negra; vozes sibilantes nas paredes do castelo…) e alguns clássicos de gothic horror mais contido, como “The Innocents”, de Jack Clayton. Apesar das traições de uma estrutura descompensada – onde quase não existem primeiro e terceiro atos – e de um mistério pouco satisfatório, exposto às três pancadas, este é um filme onde a estética e a proeza técnica confluem de forma bela e eficaz o suficiente para deixarem impressões gravadas na memória do espectador. Num universo comercial saturado pelo excesso de estímulos, iterações infindáveis em transmedia e uniformização narrativa e visual, a fuga para uma forma mais clássica e contida, mas nem por isso menos criativa, é um bálsamo para olhos cansados.
Gil Gonçalves