A meio de uma atuação da peça “Le Cocu” (O Cornudo), Yannick (Raphaël Quenard) levanta-se e interrompe o espetáculo para tomar o controlo da sessão… É esta a curiosa sinopse de Yannick, de Quentin Dupieux, estreado recentemente, e com algum atraso*, em Portugal. Dois críticos da Tribuna foram ver o filme, e deixam-nos aqui as suas impressões.
* Dupieux, seguindo o seu habitual ritmo de trabalho acelerado, tem já um novo filme, Daaaaaalí !, exibido numa mostra especial da obra do realizador no Cinema Fernando Lopes, em Lisboa.
Quentin Dupieux não voltou a fazer das suas. Desta vez, Mr. Oizo, perde as estribeiras e mergulha, de forma subtil e pouco mordaz, num tema absolutamente necessário, revigorante e actual: a audiência inoportuna ou até mesmo, o acto de importunar o artista. Atenção, Dupieux continua a dramatizar e a chocar nos actos, mas não na linguagem utilizada. Ter-se-á o realizador francês, conhecido pelo seu dadaísmo fílmico, suavizado no temperamento e direccionado a sua cinematografia para uma vertente de pertinência sócio-cultural? Em Yannick, Dupieux centra a acção no espectador de uma peça de Teatro, que no seu decorrer, se manifesta fervorosamente contra o conteúdo que lhe é fornecido. Nesta luta a solo, Yannick dispara para todos os presentes, público a actores, revelando um conjunto de aspectos condicionantes da sua ida ao equipamento cultural em questão, mais concretamente: a necessidade de recorrer a transportes públicos suburbanos e a demora a eles associada; a troca de turnos com os seus colegas de profissão; algum investimento monetário na compra do bilhete e toda a logística própria de quem não vive na grande urbe. É certo e sabido que o público, o colectivo, aquele que vai e vê, vai tendo cada vez mais escolhas no mundo cultural que frui: cinema, teatro, música, pintura, escultura, e muitas outras expressões artísticas. Todos os subgéneros destes sectores culturais vão contando com cada vez mais alternativas e opções, sendo cada vez mais expandido o conceito de equipamento cultural e instalação artística. Com efeito, nesta obra, são levantadas questões significativas sobre a arte e o seu propósito. Deverá, ou poderá, o espectador assumir um papel de crítico directo e momentâneo daquilo que recebe? É legítima essa análise? É que os gostos discutem-se. Porém, é no local onde se cria a arte que se deverá dar palco à discórdia? Onde e quando pode o público exercer o seu descontentamento, frustração e inviabilidade? E a quem pode este dirigir o seu desagrado? Dupieux responde na voz de Yannick, com erros ortográficos e muito exagero!
Rita Cadima de Oliveira
Mal d’amour social, Dupieux filma a luta de classes. A discórdia entre um espectador e a cena de um teatro evolui para uma inusitada ameaça com arma, a tomada de reféns, e uma concluente intervenção policial. Paris em 2023, o problema aqui filmado não é cultural. Até porque, com excepção dos eventuais erros gramaticais, a peça que Yannick impõe aos “seus” actores e ao “seu” público não é fundamentalmente pior do que a desastrosa comédia que Yannick interrompera. Um conflito de natureza social : o desprezo mútuo entre a cidade e o subúrbio, e um mal estar instalado na classe excluída. Recorrendo ao bom humor e ao “absurdo” que lhe são habituais, Dupieux parece até imaginar, com um tanto de falsa ingenuidade, uma possível harmonia entre os dois campos, ao “expulsar” o velho da sala e deixar a casa nas mãos daquele gardien de nuit – que tirara o dia e fizera esse longo trajecto de autocarro para poder se divertir um pouco na cidade.
Como sempre com Dupieux, não se trata aqui de um “verdadeiro” filme, antes o esquema ou o propósito de um filme. Mas será na peculiar simplicidade do conceito de Yannick, e na sua evidente proximidade com o “teatro filmado”, que o realizador consegue talvez, pelas lágrimas finais de Raphaël Quenard, de fundo melodramático, nos oferecer as imagens mais essencialmente cinematográficas da sua obra.
Miguel Allen