Conhecido maioritariamente por motivos extra-diegéticos – nomeadamente o notório flop de bilheteira que deixou de rastos os Zoetrope Studios e o sonho de Coppola de uma “fábrica de cinema de autor” – este filme de 1981 adquiriu estatuto de mito na história da Sétima Arte. Obra de raro virtuosismo técnico e carta de amor a um cinema que já não se fazia (versando sobre um cinema do futuro), está agora nas salas portuguesas, com uma versão restaurada e reeditada. Quatro tribunos foram ver e deixam-nos agora as suas sobreimpressões críticas a One From the Heart, de Francis Ford Coppola.
“Love is for suckers”, dizem-nos em One from the Heart. No caso do filme, trata-se do amor por uma pessoa, mas poder-se-ia dizer o mesmo do amor por um meio, uma indústria: o cinema. One from the Heart existe porque Coppola sempre amou o cinema, ao ponto de querer recuperar a magia dos musicais românticos da velha Hollywood numa época em que ninguém o pedia. É, realmente, um gesto de “sucker” – persistente, mas ainda assim “sucker”: um daqueles que só o amor pode criar. One from the Heart – um musical de visuais belíssimos, inspirados e influentes (conseguimos ver os seus ecos em filmes tão diferentes quanto Blade Runner 2049 e La La Land) – dificilmente estaria no cartão de bingo dos adeptos de cinema em 1981, mas, apesar da produção atribulada, do turbilhão de custos crescentes, do fracasso de bilheteira e crítica, e do empurrão para a falência, o filme não só persistiu no imaginário cinéfilo como conta agora com uma versão restaurada. Merecia – a visão de uma Las Vegas estilizada e banhada em néon é digna de ser (re)vista no grande ecrã. No entanto, apesar do visual lavado, obviamente continuamos com os mesmos personagens, os mesmos dilemas e a mesma história. E é aí que One from the Heart fica aquém de me conquistar. A eficácia sentimental do desmoronar da relação amorosa entre Hank e Frannie depende do desenvolvimento deles como personagens, que é, na melhor das hipóteses, superficial. São arquétipos às avessas um com o outro, com conflitos mundanos tangencialmente explorados, que não permitem sentir profundamente a dor, a amargura, o arrependimento de uma relação em ruptura. Poder-se-á dizer que o filme sempre quis encandear-nos mais com a beleza e o surrealismo das imagens do que com o argumento. Um filme do fundo do coração onde o coração acaba por ser o que mais falta faz.
Carla Rodrigues
If I could sing to you, I’d sing to you.
Dizer a verdade a mentir. É o que arrisca Coppola, do fundo do (seu) coração, nesta divagação noturna por uma Las Vegas de miniaturas e cenários de estúdio. Não há dúvida que One From the Heart seduz pela sua proeza técnica, pelo eterno rótulo de falhanço épico, pela banda sonora… Mas é a sinceridade no fundo deste flute de artifício que fica connosco, quando as cortinas se fecham sobre o último plano do filme. Porque por detrás de todo o néon, dos planos sobrepostos e dissolvidos (numa dança de raccord sem igual), dos jogos de sombras e cor, dos comentários cantados por Tom Waits e Crystal Gayle (qual coro de teatro grego), estão Hank e Frannie. Não são gamblers ricos e estilosos, apesar de viverem em Las Vegas; não são esculturais, apesar de serem protagonistas de um filme romântico; não são interpretados por vedetas e estão, ambos, longe de um caráter recomendável ou de uma transformação catártica. Contudo, ainda que os seus arcos possam ser pouco aprofundados, eles não são pouco profundos. Nem o é o virtuosismo que os rodeia. Aí reside a beleza deste salto de fé de Coppola: tudo está ao serviço da vulnerabilidade de duas pessoas simples (e, portanto, personagens complexas), da exteriorização da sua interioridade e da universalidade de sentimentos que colocam homens e mulheres em pé de igualdade (apesar do arcaísmo dos estereótipos que os representam). O amor é mostrado em todas as suas dimensões. Do glorioso ao patético, do imundo ao imaculado. Oscila em todo o expressionismo e (vã) glória, levando-nos, por fim, a pousar num abraço lacrimejante, onde os sonhos de parceiros ideais, encontrados e experimentados, são preteridos pela realidade ditada pelo coração. Depois de uma canção mal cantada, a poesia: os rostos de Teri Garr e Frederic Forrest em close-up. Um momento impossível sem a odisseia de flashes que o antecede, mas que a suplanta. E suplanta precisamente porque, contra qualquer lógica narrativa, nada é “merecido”, simplesmente é. O romance inteiro está contido neste momento. É o momento. Haverá algo mais verdadeiro?
Gil Gonçalves
O mote diz que quando Francis Ford Coppola faz uma história de amor, não devemos esperar corações nem flores. Mas seria suposto esperar um enredo amaldiçoado, slows, neons e muita cor? Sim e mais. Uma obra-prima que merece uma restauração digital 4K, à qual se acrescenta Reprise ao título original. Acontece na cidade dos sonhos, dos jogos e dos apostadores, Las Vegas. Da banda sonora imbatível marcada pela tonalidade de Tom Waits ao êxtase poético e à alucinação estética, One From The Heart é arte visual e sonora num estado tão puro quanto os delírios das personagens. Coppola não é comedido nas canções tal como também não é moderado na loucura e toxicidade dos encontros e desencontros deste amor musicado. É como se de uma síncope melancólica se tratasse. Muito comparado ao estilo da Broadway, é-nos oferecida a possibilidade de entrar em casa de Hank e Frannie, um casal que está a viver uma crise na sua relação de cinco anos. O romance é desejado por Frannie, porém, o pouco romântico Hank não corresponde às pretensões da sua amada. Na desdita, uma resignada Frannie abandona Hank no dia do aniversário de namoro. Seguem caminhos sinuosos e altamente construídos em álcool, cigarros e lágrimas. Ambos procuram o seu par de sonho, mas por mais fascinantes que pareçam as duas almas que encontram nesta busca, não passam de pontuais momentos incendiários de autocomiseração e consciencialização. Rapidamente se apagam as luzes deste palco e a cor dá lugar a uma névoa em ambos os corações. O par reúne-se, possivelmente reergue-se, no entanto, Coppola não nos chega a permitir saber se o verdadeiro amor prevalece sobre a paixão fugaz e efémera. Mas provoca-nos uma imensa tensão e vontade de viver acompanhados por esta banda sonora.
Rita Cadima de Oliveira
Singular é aquilo que se pode chamar a One From the Heart, um filme extra-filme, tal não é a carga da sua atribulada história, tão triunfal como dantesca. Ciente da sua ambiciosa visão, Coppola procurou homenagear o cinema musical filmando a crise conjugal (alguns diriam antes história de amor, que de facto é) integralmente no interior dos seus estúdios Zoetrope, onde recriou uma Las Vegas luminosa, neonizada, plástica. O elogio não é novo: a realização e o aspecto visual, as cores, esse plastificado dos cenários desérticos e longas avenidas facilmente identificáveis como enormes cartazes pintados em background que são, atribuem a One From the Heart uma teatralidade sui generis. A alteração de “cenas”, muitas vezes em sobreposição (observamos em simultâneo Teri Garr e Frederic Forrest em locais distintos, mas pisando o mesmo “palco” através de jogos de luzes), espelham bem esta homenagem de Coppola a esse mundo das artes plásticas, mas também em especial aos musicais, nunca o sendo realmente. Infelizmente a excessiva musculatura e superficialidade com que o realizador trata as suas personagens, realistas na conclusão das dinâmicas de casal sim, mas unidimensionais no seu âmago, fazem com que a narrativa (mais digna de uma revista à portuguesa do que duma produção da Broadway) de One From the Heart seja difícil de penetrar, ficando antes na memória a louca componente visual. Regressando ao início talvez o mais interessante de One From the Heart seja mesmo o seu conteúdo extra filme, a forma como Coppola se arruinou perante esta produção de $26 milhões que não atingiu sequer $1 milhão nas bilheteiras, assinalando o inicio da sua queda pós-Apocalypse Now, vindo com o passar dos anos a tornar-se filme de culto. Mas sobre isso já tudo foi dito.
David Bernardino