Críticas a La Chimera de Alice Rohrwacher

EquipaJunho 11, 2024

O sucesso em Cannes (Grand Prix, em 2014, e Prémio de Melhor Argumento, em 2018) fez de Alice Rohrwacher um nome a ter em atenção no circuito europeu. À quarta longa-metragem, La Chimera, revela-se uma cineasta madura, dona de um estilo próprio, tanto a nível visual, como da escrita, que nas palavras de Bong Joon-ho “mistura realismo mágico e neorrealismo, colocando personagens inocentes em confronto com colossos de corrupção”. Com efeito, podemos encontrar todos este elementos no filme que coloca Josh O’Connor (outro nome do momento) na pele de um peculiar assaltante de túmulos. Um poder celestial e uma maldição bem terrena fazem da límbica personagem o corolário desta junção de realidades, bem como o retrato de várias problemáticas sociais numa Itália quase contemporânea, que tantas vezes aparecerá cristalizada no tempo. Já nas salas portuguesas, o filme foi visto por três tribunos, que nos deixam as suas críticas.

 

Um forasteiro precedido da sua reputação. Um presente impregnado de passado. Uma ponta de fantasia, num mar de preocupações sociais. O espiritual feito corpo e o sagrado profanado. Em La Chimera todos os opostos se cruzam e todos os binómios confluem, quando Arthur – ladrão de túmulos (sobejamente conhecido no seu meio) – regressa a Itália, andrajoso e quebrado. Vai encontrar-se com a trupe habitual, mas o seu talento não lhe dá qualquer alento e a sua busca deixou de ser verdadeiramente pelos valiosos artefactos etruscos, pagos a peso de ouro no mercado negro, que magicamente consegue pressentir. Tudo no espaço que rodeia Arthur parece refletir o seu interior. Marcado pela perda, escava progressivamente mais fundo, pelas ruínas do passado, em busca da quimera impossível. À superfície, desloca-se por paisagens decrépitas, habitualmente mal acompanhado e sempre em roupas que já viram melhores dias. O caminho deste Orfeu contemporâneo será marcado por preocupações reais, mas não suas. Bandidos, imigrantes ilegais, okupas, fidalguia decadente e traficantes de arte vão delinear o ensaio social de Alice Rohrwacher – uma reflexão sobre o valor da arte (e da vida), no contexto de um mundo cada vez mais mercantilizado, onde o sagrado é um conceito obsoleto – mas não chegarão ao bondoso, dolorido e cansado Arthur. O mesmo Arthur que será (estamos convictos) falado daqui a uns anos como uma das grandes encarnações do então indiscutível Josh O’Connor, em retrospetivas onde surja esta pequena pérola do cinema italiano, que tanto vai beber a Fellini e De Seta como a Kusturica. A letargia deste herói vencido rapta-o do presente, do futuro e da felicidade. Transforma a sua competência, que utiliza de forma desinteressada, numa maldição – algo a ser explorado pelos Golias do seu ramo de atividade, algo a afundá-lo um pouco mais. Restará nele um assomo de virtude, um vislumbre de homem no morto-vivo que continua a ser chamado para o túmulo, mas não será suficiente. O mundo já não é dos idealistas, perdidos que estão nas suas dores pessoais. Já não o era nos anos 80, onde decorre a ação de La Chimera. O individualismo grassa, deixando caminho aberto aos materialistas, sempre ávidos, sempre organizados – mesmo quando concorrentes – em torno de um único e comum objetivo: o lucro. Os resistentes, ainda que existam, deixaram de ser as personagens principais. Este é o pranto de Rohrwacher, tecido nas linhas de um novelo atmosférico tão belo que quase nos leva a crer que, entre minutos de magia, estilizados interlúdios musicais e fugazes conexões de profundo carinho, há espaço para um futuro alternativo, se não nos perdermos demasiado em nós próprios.

Gil Gonçalves

 

A Quimera será sempre um filme auto-consciente e bem executado, no entanto as suas ideias parecem seguir um caderno de encargos com vista a atingir um produto final com uma lista de características facilmente identificáveis. A sensação com que se fica ao longo de todo o filme é que Alice Rohrwacher, realizadora italiana, está a fazer um filme para estrangeiros que sonham com paisagens italianas desde o exílio de Al Pacino na Sicília em O Padrinho. Apresentando belas imagens da ruralidade italiana, e romantizando as suas gentes (que pelo que observamos no filme estão sempre a cantar, bailar e cochichar atrás das portas), Rohrwacher começa a construir o seu BBC vida selvagem de estereótipos. Essa ideia é ainda mais reforçada com o facto do protagonista ser um inglês, Josh O’Connor, deslocado da sua terra natal, mas sem que o argumento alguma vez realmente o justifique. Aliás, La Chimera faz desses surtos argumentativos o seu modus operandi durante os seus longos 133 minutos desiguais. O filme procura beliscar várias temáticas: a perda/luto, a aventura, o sentido de comunidade, o amor, as desigualdades sociais, mas também os vários estilos formas: realismo vs onirismo e até metáforas visuais, como o rosnar numa discussão. Nada disto é aprofundado por Alice Rohrwacher, antes pelo contrário, é essa constante mudança de tom que impede A Quimera (e não basta justificar com o título) de ser algo de arrebatador. Sempre que o filme apresenta sequências realmente interessantes, como a viagem de comboio inicial ou mais tarde a descoberta na praia, o filme preocupa-se mais em regressar ao seu estado voyeurista do que em dar espaço ao magnetismo visual dos seus momentos mais inspirados, que não são poucos. Um epílogo excessivamente longo e argumentativamente desnecessário também deita por terra alguns dos melhores esforços do filme: afinal que luto é esse que Arthur está a fazer? Tem sequer espaço no argumento? Fica a sensação de que o filme de Alice Rohrwacher poderia ter sido algo de verdadeiramente grandioso, uma obra-prima até, mas que acaba por se ver preso no labirinto das muitas ideias do seu ego.

David Bernardino

 

Alice Rohrwacher procura a vida depois da morte. Ou a convivência com a morte em plena vida. A Quimera podia ser uma parábola. E é. É o mito e a utopia. É a demanda pelo ser mitológico num corpo híbrido, não em forma de leão, cabra, serpente ou dragão, mas em formato heterogéneo que resulta da combinação do passado e do presente de uma mulher que o foi mas já não é. Nesta fabulação dispersa, um rufia inglês recém-saído da prisão, o arqueólogo Arthur (Josh O’Connor), não resiste a entregar-se de novo ao saque de túmulos etruscos com o seu não tão amador gangue de cúmplices tombaroli. Este colectivo de ladrões de tumbas que sobrevive na marginalidade e na delinquência, vai desenterrando tesouros antigos, traficando-os no mercado negro, mas também escavando passados sombrios e muitos fantasmas, fazendo deste filme o verdadeiro artefacto italiano. N’A Quimera pretende-se tanto desenterrar espólios divinos de forma ilegal como procurar de forma incessante uma musa, a falecida Beniamina, como porta lendária para o submundo, mas sobretudo para a redenção. No seu todo, A Quimera é um filme desalinhado e sem escrúpulos, charmoso, inconveniente, repleto de linhos, de fábricas e zonas industriais (Il Deserto Rosso, de Antonioni), de saques, de brutalidade e intensidade italianas e de bom uso de película (16mm 35mm), um todo que (me) maravilha os olhos.

Rita Cadima de Oliveira