Filme de abertura do Indie Lisboa 2024, este documentário de Klára Tasovská debruça-se sobre a vida e obra da fotógrafa Libuše Jarcovjáková. Valendo-se apenas do espólio fotográfico da artista – compilado, organizado e cortado num notável trabalho de montagem – e da narração na primeira pessoa de episódios da sua vida, esta é uma obra arrojada e experimental, que leva o espectador numa viagem pelo passado conturbado de um espírito permanentemente inquieto. Gil Gonçalves e Rafael Fonseca assistiram à sua estreia nacional, no cinema São Jorge, no âmbito do festival lisboeta. Aqui ficam as suas críticas.
Quando falamos de cinema, é tentador excluir a verdade da equação. Afinal, tudo o que implique contar uma história, filmar certas imagens, dar-lhes uma coesão narrativa através da montagem, implica um ponto de vista, uma curadoria pessoal que revelará, na melhor das hipóteses, indícios de uma verdade subjetiva e, na pior, uma total manipulação do espectador. Esta será a grande cruz do documentarista escrupuloso: como fazer um cinema do real, se o real não é atingível em cinema? Tal como noutras utopias, a resposta estará sempre na procura, na intenção de chegar mais perto de um virtuoso (e inatingível) horizonte. I’m Not Everything I Want to Be, da checa Klára Tasovská, é uma verdadeira ode a este princípio filosófico. Se, por um lado, assume claramente o posicionamento histórico e político da sua autora, também é certo que o faz procurando ao máximo a verdade do seu objeto fílmico, dando voz à pessoa e ao trabalho da fotógrafa Libuše Jarcovjáková. Com uma abordagem experimental, que recusa os preceitos narrativos clássicos e a própria imagem em movimento, é apenas das fotografias de Jarcovjáková, da sua voz (off) e de uma sublime sonoplastia que nasce este filme. Ao invés da tradicional estrutura de exposição de tema, clímax e resolução, temos uma amálgama de acontecimentos tão episódica quanto circular (mas nem por isso pouco cuidada), tal como foi a vida de uma fotógrafa que, entre os 20 e os 50 anos (mais coisa, menos coisa), mais não fez do que procurar-se, entre agruras e indefinições pessoais, sistemas políticos e geografias distintas. A montagem é criativa, cortando, justapondo, ligando as fotografias e associando-as a sons de animais, multidões e ruído branco, num dinamismo entre o que é visível na tela e o que se forma na mente de cada espectador. Uma abordagem corajosa, cândida e comprometida com a verdade, que acompanha as oscilações de interesse, aborrecimento e frustração próprias dos episódios de vida narrados.
Gil Gonçalves
I’m Not everything I Want to Be, de Klára Tasovská, é um documentário bastante competente e constituiu uma boa sessão de abertura para o 21º IndieLisboa, na sala principal do São Jorge. Sobre a vida e trabalho da fotógrafa Libuše Jarcovjáková, narrado inteiramente pela própria, que lê o seu próprio diário, completo e extenso, da juventude e da vida adulta, o filme é composto por imagens sem movimento, fotografias de Libuše, unidas pela montagem e pela notável sonoplastia (efeitos sonoros subtilmente associados a cada foto) num percurso pela sua vida, num eixo, entre outros, de desconhecimento-reconhecimento (a narração abre com Libuše, há pouco tempo, a dizer que finalmente vai ter uma exposição em nome próprio, momento pelo qual esperou os últimos 50 anos). Pelo caminho, há vários momentos em que o percurso da autora é marcado pela repetição, pelo desgosto e pelo tédio, mas é algo que corresponde, sem rodeios, à realidade daquela parte da sua vida, e a sua fotografia vive perfeitamente dessa repetição e respiração quotidiana – assim se aguenta também o filme. No entanto, a partir de metade, que corresponde a um momento onde a fotógrafa sai finalmente da Europa para o Japão, delinea-se de facto com outra melodia o seu “arco de vida”, e o documentário preenche-se com um pouco de merecida felicidade. Daí até ao fim há um maior batimento, cor e ritmo no filme, até a um final belo e emocionante, a que acresceu a presença da própria na sala, e a fotografia que nos tirou.
Rafael Fonseca