Alienação suburbana aliviada pelo amor parassocial a uma série de televisão. O segundo filme de Jane Schoenbrun, embora críptico, é bem mais acessível do que o seu primeiro exercício lo-fi, We’re All Going to the World’s Fair. Desta feita, o refúgio não são as entranhas da internet, mas a televisão. Este é um retrato da obsessão televisiva como escape a uma realidade dura, a uma sociedade indiferente que alimenta uma desconexão violenta e muda, que, tal como a estática num ecrã de TV, dificulta a distinção entre o falso e o real. Quatro tribunos deixam-nos as suas críticas a I Saw the TV Glow, de Jane Schoenbrun.
O apego a uma série de televisão medíocre é um sentimento familiar – afinal, no início dos anos 2000 – o pano de fundo temporal do filme – a televisão não era o meio de prestígio que é atualmente. Em I Saw the TV Glow, este apego é retratado de forma extrema, mas notável, com um sentimento forte de nostalgia que escapa às armadilhas do pastiche fácil. Owen e Maddy, os protagonistas, só vivem verdadeiramente quando o brilho da televisão se derrama sobre eles – o tempo entre episódios da série que os hipnotiza (The Pink Opaque, uma espécie de Buffy The Vampire Slayer) condena-os a uma condição vazia, quase espectral, refletida até no nome da escola que frequentam, Void High School.
O equilíbrio entre o apelo e o perigo da dependência de uma peça de cultura pop é explorado justamente através de The Pink Opaque. Colando os jovens ao ecrã todos os sábados à noite, a série deixa de ser uma anestesia para uma existência dolorosa e acaba por ameaçar tornar-se a sua própria realidade. Schoenbrun esculpe este filme de maneira precisa e cuidadosa, lo-fi nas interações, mas mergulhado num sentido estético fortíssimo, onde o néon banha ora personagens, ora locais, lembrando que o brilho da televisão pode ser tanto sedutor quanto alienante.
A atmosfera sufocante de um subúrbio norte-americano no virar do século é pintada de forma certeira e inquietante – uma lembrança constante do desejo (ou mesmo da necessidade) de Owen e Maddy escaparem à asfixia da vida padronizada que os espera nos seus bairros. Por ser relativamente críptico, o filme abre espaço para várias interpretações, mas algumas são inescapáveis: a identidade, a alienação, a obsessão, a solidão, o vazio de uma vida incompleta, o apagar de quem se é em prol de um vago encaixe numa sociedade cruel e excluidora.
A mistura intoxicante entre a nostalgia e a qualidade quase etérea do guião dá a este filme contornos enigmáticos. O filme acaba por exercer um poder semelhante ao que o The Pink Opaque exerce sobre os espectadores, prometendo que poderemos continuar a discuti-lo durante anos sem nunca termos a certeza de termos acertado nas mensagens ou peças em falta. Pelo menos enquanto todos virmos o ecrã brilhar.
Carla Rodrigues
Encontrar abrigo num mundo paralelo, de tão insuportável que é o verdadeiro – talvez mesmo fatal. Na década de 90, dois adolescentes, Maddy e Owen, ficam fascinados, enfeitiçados até, com uma série que passa à noite na televisão. Este é um filme sobre espaços seguros, tanto físicos (um bar alternativo) como imateriais (as personagens de uma série). Depois de We’re All Going to the World’s Fair, o novo filme de Jane Schoenbrun constitui uma clara expansão em termos de escala, mantendo os temas de solidão, identidade, género e o pavor constante, asfixiante, de viver numa pele que não sentimos ser nossa. I Saw the TV Glow é uma obra fortemente pessoal para Schoenbrun, como algo que forçosamente irrompeu de dentro de si, representada na tela pelas experiências vividas por Owen. Aos seus olhos, Maddy não é apenas a colega mais velha, cool e misteriosa: é também o símbolo de uma transição que tanto assusta Owen. Mais do que qualquer monstro televisivo poderia.
Pedro Barriga
I’ll be waiting for you in the dark room after school
Pós-grunge e neo-gótico, um fever dream noctâmbulo de tons fluorescentes contra preto. Mellon Collie and the Infinite Sadness em VHS, a juventude enquanto “video-drama” idealizado a partir de pontos de referência, culturais e sociais, dos anos 1990. O universo tangível de I Saw The TV Glow será o seu aspecto mais marcante. E é uma pena que nunca tenhamos tido um verdadeiro The Pink Opaque – essa espécie de Power Rangers via Buffy The Vampire Killer, informado por Lynch e Méliès, sob a distorção sonora de drones shoegazer. Mas o miserabilismo pelo qual o filme se arrasta na sua longa segunda parte torna-se rapidamente desgastante. O constrangimento insistente de Justice Smith, passando de empático a cansativo, o filme retomba, apesar do forte sentido estético, numa certa redundância, divagando pelos lugares comuns de outras fábulas de depressão e apatia de uma juventude perdida pelo universo suburbano americano. Como os seus dois protagonistas, também o filme parece, enfim, encontrar o seu refúgio e consolo, apenas, quando concentrado na mitologia pop que venera. E o seu “veneno”, como que paralisado pelo Luna Juice, nunca se revela verdadeiramente mágico.
Miguel Allen
I Saw the TV Glow parece querer fazer tudo e o seu contrário. Por um lado, assenta a sua narrativa num estilo alegórico, ao mesmo tempo que nos grita – no diálogo, em texto, em esquemas de cores – a mensagem da qual depende, quase exclusivamente, para justificar a sua existência. Por outro, pretende criar um universo atemporal, vazio e hiperbolicamente miserável, de forma a relevar a depressão e deslocamento das suas personagens centrais, ao mesmo tempo que fomenta uma nostalgia confortável e apelativa para com os media dos anos 90. Ainda que possamos apreciar a fotografia e composição de alguns dos seus planos, bem como a direção de arte e caracterizações patentes nos segmentos de The Pink Opaque (a série fictícia que os dois protagonistas acompanham), não se pode dizer que algum destes elementos contribua particularmente para dar alguma coesão ou substância a este glorificado projeto escolar. Tudo se cinge a uma amálgama de significantes narrativos (teenage angst, famílias disfuncionais, doença mental, experiência queer) e referencialismo (de Buffy a Twin Peaks, passando por Power Rangers e videoclips de Smashing Pumpkins), envolta numa capa de bizarria “surreal” e estética ready made, que mais não faz do que ocultar as debilidades do guião e pedir a validação do público-alvo desejado. Pouco é feito para explorar a influência, positiva ou negativa, que os media têm no crescimento, conexões e formação de identidade dos adolescentes. Pouco ou nada se investe no desenvolvimento das personagens, que se vêem reduzidas a megafones de exposição narrativa ou da visão de mundo de Jane Schoenbrun. Ao invés, TV Glow fica-se pela glorificação do escapismo, ao qual associa o potencial de libertação via identificação (pretensão que o próprio filme tem, diga-se). Uma posição preocupante que se agrava no segmento final, quando esta parábola culmina num moralismo cautelar que roça o insultuoso, ao usar o sofrimento específico do protagonista (e das pessoas que representa) para fazer a sua mensagem aterrar. Um autêntico desastre.
Gil Gonçalves