Fallen Leaves é a 20ª longa metragem do finlandês Aki Kaurismäki. Estreada no 76º Festival de Cannes, esta obra é a continuação de uma série de filmes do autor com o proletariado ao centro, da qual já faziam parte Shadows in Paradise (1986), Ariel (1988) e The Match Factory Girl (1990). Fugindo a uma classificação fácil, o filme mistura drama e comédia romântica, no estilo tipicamente minimalista e rigoroso do cineasta, com laivos de humor absurdo. Foi visto por quatro membros da Tribuna do Cinema, suscitando reações bastante díspares.
De escala e duração modestas, mas tonalmente bem aguçado, Fallen Leaves abre (e mantém-se, quase até ao fim) num purgatório terrestre, até chegar a uma espécie de paraíso. Encontra, desencontra e volta a reunir Ansa e Holappa, através de sonhos de karaoke e cinema, num mundo terrível de guerra, precariedade e letargia. Uma comédia romântica que suaviza as agruras da vida proletária, sem esconder a deprimência que a pobreza (económica e espiritual) acarreta. O riso na face da desgraça, o amor à porta do apocalipse. Nesta Helsínquia contemporânea, mas parada no tempo, de tecnologia e decorações anacrónicas, os signos narrativos clássicos são despidos até à sua forma mais pura e a dramaturgia minimalista é materializada em atuações quase robóticas, que reforçam o humor absurdo – ora cândido, ora cáustico – dos diálogos, concentrando-nos na mais terna troca de olhares, nos sorrisos que mais não são do que esgares, na beleza que subsiste onde a vida é mais feia. Para esse foco, muito contribuem, também, uma iluminação e sonoplastia imaculadas e uma banda sonora altamente sugestiva. O humor seco, a omnipresença da guerra russo-ucraniana nas telefonias e a mecanização de movimentos e falas poderá não ser para todos: Kaurismäki deixa a emergência de emoções à disponibilidade de cada espectador. Mas quem se sintonizar ao estilo do veterano finlandês sairá deste filme, que é tão afetuso e divertido, quanto politicamente desperto e desolado, de coração cheio. Apto a rir do absurdo mais um dia.
Gil Gonçalves
Os tempos mudam, as vontades também. Menos a de Aki Kaurismäki. O realizador finlandês (já se poderá considerar também português?) não parece andar muito importado com exigências estético-culturais e argumentativas, continuando na sua repetitiva demanda de elaborar retro retratos da insustentável situação socioeconómica europeia, mais concretamente, o foco na vida do proletariado finlandês, mas também na vida no seu sentido mais lato. O trabalho não se separa nunca da condição humana e social, por isso, os operários têm neste filme um papel tão preponderante. É através do azar e do acaso que os caminhos de duas almas precárias se vão acidentalmente cruzando, destronando as adversidades e os mal-entendidos, enfrentando, mais separados do que juntos, problemas como o alcoolismo ou aquele que hoje em dia também é um obstáculo à convivência, o hábito da solidão. Assumir que estamos sós e o processo de aprender a receber o outro na nossa vida é mesmo o ponto mais interessante de um filme cinzento, tão cheio de tudo e de nada, e que parece desprovido de positividade mesmo no seu final feliz (?). Não choca o cariz alheado e absorto das personagens, o que é mais perturbante é a forma como Kaurismäki parece estar a fazer um filme só para si, alheando-se dos outros. Para quê ter um homem, se se pode ter um Chaplin? Apesar desta obra ser uma construção emocional de uma relação à partida fracassada, foi preciso esperar 79 minutos para ver folhas cair.
Rita Cadima de Oliveira
Um simples conjunto de piadas secas em forma de one liner e três músicas empolgantes não são suficientes para fazer um bom filme. Um filme depressivo sobre duas pessoas depressivas de classe baixa que se encontram por acaso e começam a sair juntas da forma mais aleatória e desconfortável possível. Há um esforço evidente de Kaurismaki para tornar os personagens o mais desinteressantes possível, tentando capitalizar a ironia do miserabilismo apresentando o lado sombrio da sociedade de um país que consideramos altamente desenvolvido (Finlândia), minado pelo álcool e a precariedade (pelo menos do ponto de vista que o realizador escolhe apresentar). Tenho dificuldade em entender por que razão Fallen Leaves é considerado por alguns como arte de elevada qualidade com estas personagens e pontos da trama unidimensionais. Não há imagens interessantes, cinematografia interessante (uma ou outra iluminação de belo efeito, mas afinal de contas isso é o mínimo dos mínimos) ou diálogos interessantes. Tudo é feito pela rama, propositadamente sim, mas esse cinismo não serve para tudo. Este é um filme interessado em agradar apenas uma certa audiência elitista distanciando-se através do seu cinismo do público que está a filmar. É por causa de filmes como Fallen Leaves que continua a ser cavado o fosso entre a crítica e o espectador médio, e afastado o público do cinema independente e das salas, marginalizando-o e relegando-o a filmes de consumo rápido. Fallen Leaves é um triste exercício de masturbação intelectual que romantiza o miserabilismo das classes mais baixas e coloca o espectador na posição de voyeur das idiossincrasias dos seus protagonistas. Numa altura em que o bilhete de cinema está cada vez mais caro a ironia é total, mas está do lado de fora do filme.
David Bernardino
O sublime alcançado pela simplicidade. Kaurismäki é um dos poucos sucessores de John Ford ou Frank Borzage, capaz de filmar os trabalhadores sem cair no miserabilismo, conferindo-lhes toda a nobreza da existência, por mais parca que seja. Fallen Leaves é uma carta de amor à história do cinema, com inúmeras referências que surgem de forma natural na narrativa, onde o acaso afasta e aproxima os personagens e onde pequenos e subtis detalhes carregam todo o peso do mundo. Um filme profundamente melancólico mas nunca niilista ou pessimista, assente na esperança que só o amor é capaz de perpetuar.
Bruno Victorino