Numa altura em que os Estados Unidos estão politicamente divididos, Alex Garland, realizador de Ex Machina, Annihilation e Men, propõe uma visão semi apocalíptica de um cenário actual de guerra civil. Com críticas que vão do muito bom ao péssimo, Civil War parece ter dividido a crítica e o público. Os tribunos Rita Cadima de Oliveira e David Bernardino foram ver o filme e partilham as suas críticas.
À quarta longa metragem Alex Garland decide, em papel, propor um cenário que estará no subconsciente norte-americano pós invasão do Capitólio, numa altura em que os Estados Unidos estão mais divididos do que nunca: uma guerra civil. Aquilo que uns entendem ser a falha do filme é, no meu entender, o seu grande mérito. Garland propõe uma visão asséptica do “problema”. Não existem bons e maus, não existe sequer uma narrativa ou razão por detrás do que “está a acontecer”. Não existem lições ou moralidade entregues de bandeja a um espectador sedento de virtude. Apenas existem Estados que se insurgiram contra o poder centralizado de forma militarizada e a titular guerra civil, violenta, objectiva. No meio está um grupo de fotojornalistas de guerra, personagens centrais que acompanhamos, observando pelos seus olhos (e pela sua lente) os horrores a que assistem. Personagens detestáveis, exploratórias e com poucos escrúpulos, são o veículo perfeito para acompanhar o cinismo do filme de Garland, que primeiro se estranha e depois se entranha. Uma realização imaculada, especialmente a nível de efeitos visuais, que mostram um close-up guerrilheiro voyeurista de elevado interesse. Ainda assim o seu ponto mais forte será mesmo o som, para ser ouvido numa boa sala de cinema, envolvente e absorvente, dir-se-ia mesmo desconcertante, subindo o nível do que já havia atingido na sequência final de Annihilation. Infelizmente Civil War não está livre de falhas, e é verdade que a sua objectividade temática balança numa linha fina que por vezes arrisca ser um simples lavar de mãos. A inspiração demasiado óbvia em cenários pós-apocalípticos de outras obras como a recente série The Last of Us também acaba por manchar Civil War, especialmente pela falta desenvolvimento de algumas cenas especialmente tensas, como a protagonizada por Jesse Plemons, que pediam um maior desenvolvimento de personagem. Já que Garland se meteu nesses caminhos apertados, ao menos fizesse-o até ao fim e não apenas por cheirinhos.
David Bernardino
Uma hipotética guerra civil norte-americana introduz-nos às temáticas da ética e da deontologia no trabalho dos repórteres de guerra e da legitimidade que lhes é ou não inerente no que respeita à captura de imagens com conteúdo gráfico e sensacionalista. Sem timidez, Garland aborda questões prementes da actualidade tais como o uso e a manipulação da imagem para impressionar, ou seja, com vista a causar reacções incendiárias e com isto criar discórdia na sociedade. E no filme. Civil War é um filme controverso pela sua desobediência opinativa, não pretendendo nunca o realizador construir um apoio formal a qualquer uma das facções em conflito ou alguma tomada de posição relativamente às divergências que criaram esta divisão. É, sem dúvida, um retrato perturbador sobre o fotojornalismo, o sensacionalismo e a manipulação da imagem. Mas também sobre o conflito, a violência física e a deselegância da guerra e dos seus estragos sociais e humanos e da destruição urbana. Há intuito de escandalizar? Há. Mas não de uma forma vulgar pois a esta obra não se lhe exige rigor, é justamente no seu plano ficcional, apocalíptico e no imaginário estético que todo ele se constrói. Em Civil War, Alex Garland revela plena forma artística cinematográfica e maturidade, concedendo-nos impressionantes planos visuais de macro e micro dimensão, sendo este filme, em síntese, som e imagem, imagem e som numa persistência arrebatadora e à qual ninguém pode ficar indiferente, mesmo que não nos ofereça nada de inédito ou revolucionário.
Rita Cadima de Oliveira