Anatomie d’une Chute foi o filme europeu mais bem sucedido de 2023. A jogar em casa, a 4ª longa-metragem de ficção de Justine Triet venceu a Palma de Ouro, em Cannes, e foi nomeada em 11 categorias nos Prémios César. Além fronteiras, o filme conquistou dois Globos de Ouro, foi nomeado sete vezes nos BAFTA e pode ganhar até 5 Óscares. Se a tudo isto somarmos os retumbantes sucessos de crítica e bilheteira, não há como negar que este courtroom drama, que chegou às salas portuguesas este mês, é um fenómeno incontornável. 5 membros da nossa equipa foram ver a que se devia toda a comoção e deixam-nos aqui as suas críticas.
Existiam, e existem, grandes expectativas para o filme de Justine Triet, vencedor da Palma de Ouro em Cannes. Anatomy of a Fall trata-se de um drama/thriller de tribunal que procura averiguar se uma mulher matou o seu marido empurrando-o de uma janela ou não, sendo o filho cego a única pessoa presente nas imediações do local. O facto de ser simultaneamente um drama e thriller não é uma categorização inocente nesta crítica. Enquanto thriller de reconstituição, depoimento e descoberta da verdade Anatomy of a Fall é excelente. Os níveis de tensão e ansiedade são altos, as interpretações acima da média (Sandra Hüller é fabulosa interpretando uma personagem que gera tanto empatia como desconfiança) e o investimento do espectador é grande. Dir-se-ia que o filme procura a linguagem dos thrillers de tribunal americanos dos anos 90, até mesmo as séries de crime do outro lado do Atlântico (CSI, Law & Order), com uma fineza superior (existe “crítica” à mediatização criminal, bla bla), utilizando alguns artifícios de realização (zooms, POVs, etc) por forma a dar acção à sala. Por outro lado, o filme de Triet é também drama familiar puro, os incautos diriam “à europeia”, contrapondo esse hiper-realismo à linguagem do thriller de forma amplamente desconexa. O filme é extremamente exigente para o espectador. Carregado de diálogo e detalhe enquanto courtroom thriller, e de emoção intersubjectiva enquanto ensaio dramático, Anatomy of a Fall torna as suas 2 horas e meia longuíssimas, carregadas de informação, tópicos e intenções espalhados um pouco por toda a parte. À medida que o filme avança cria-se uma sensação de ansiedade de que algum twist está para vir, algo vai acontecer (o espectador nunca sabe a verdade do que aconteceu e é esse o conseguido propósito), mas esse momento nunca chega, substituindo-se antes por algumas catarses quentinhas, que apenas contribuem para essa sensação de que o clímax ainda está para chegar. Finalizado o julgamento o filme insiste em arrastar as suas personagens para um epílogo longo e vazio que apenas vem sobrecarregar o subtexto excessivo de algumas cenas que deveriam pura e simplesmente ser cortadas (a relação entre a protagonista e o seu advogado é várias vezes mencionada, mas nunca explorada, e questionamo-nos porque razão está presente de todo). Após tanto investimento e um teasing infinito, a sensação que fica é que o filme é tudo e o seu contrário. Que nos enganou, defraudando o espectador perante um thriller que, nessa vertente, é fabuloso, manieta na perfeição a emoção e atenção da audiência, mas depois nada lhe dá em troca. Anatomy of a Fall pretende ser um filme “completo”, mas está constantemente incerto do seu rumo, confirmando o seu enorme desequilíbrio com no final.
David Bernardino
O novo filme de Justine Triet está alicerçado em dois pilares fundamentais. Por um lado, a verdade, a sua natureza e como pode ser perseguida através da linguagem cinematográfica. O facto da verdade central do filme nos ser elidida pela realizadora aumenta a tensão e sublinha a ambiguidade de todo o processo. Por outro lado, o desgaste de uma relação amorosa, a forma como nos podemos fazer tão mal mutuamente através de dinâmicas e rotinas nas quais muitas vezes não refletimos. Sandra Hüller representa esta ambivalência de forma sublime, deixando o espectador num limbo permanente entre a empatia e o desdém pela protagonista, e é nesta oscilação constante que se chega ao final do filme, com o mistério por resolver. E ainda bem.
Bruno Victorino
O herdeiro espiritual de Anatomy of a Murder (Otto Preminger, 1959) resgata para a atualidade a análise à construção de uma verdade em tribunal. Tal como o seu congénere americano, o vencedor da Palme d’Or 2023, em Cannes, deixa claro que essa construção tem muito pouco que ver com a procura da Verdade e muito mais com a geração de simpatia e aceitação de uma narrativa. Há, no entanto, duas diferenças cruciais: a assimetria de conhecimento – quer entre personagens, quer entre elas e o espectador (não sabemos, à partida, se houve crime ou se a ré mente ao advogado e ao filho) – e a omnipresença da tecnologia moderna. À medida que o julgamento se desenrola, assistimos ao uso de gravações, reconstituições, maquetes e teorias de peritos de diversas áreas que, ao abrirem uma infinitude de possibilidades, não só turvam cada vez mais a capacidade de discernir os factos, como diluem progressivamente a linha entre a esfera privada e pública das vidas de Sandra (a arguida) e do seu filho, projetando o julgamento para outras instâncias menos sérias ou competentes do que o tribunal (como programas noticiosos ou de comentário cor de rosa). O rigor formal de Justine Triet faz um brilhante trabalho de provocação, não apenas ao semear cirurgicamente a dúvida sobre a culpabilidade da sua personagem central, mas também, a nível metatextual, ao enfatizar a performance do julgamento. Os zooms inusitados, os movimentos de câmara repentinos e os planos subjetivos forçam o espectador a entrar na espetacularização do tribunal. Percebemos o circo, mas não conseguimos parar de olhar, como se estivéssemos a assistir ao escandaloso julgamento de celebridades, com direito a comentário alargado no canal por cabo. O guião pode forçar a nota em alguns diálogos, tornando-os demasiado polidos ou exageradamente acutilantes, mas analisa de forma competente os discursos do zeitgeist e as formas como podem ser instrumentalizados, abrindo espaço à reflexão do espectador, sem o excesso moralista de quase todas as grandes produções atuais. Controlado, meticuloso e envolvente, este filme é tanto um triunfo de entretenimento como um dos olhares mais agudos sobre seu tempo.
Gil Gonçalves
Sandra é suspeita de assassinar o marido e Daniel, único filho do casal e cego, enfrenta um dilema moral como única testemunha num julgamento sobre uma relação que apenas presenciou mas nunca viu. Anatomy of a Fall é um filme tenso, ambíguo e que apesar de provocador, promete bem mais do que aquilo que dá. No seu todo, a obra revela-se um conjunto de fortes experiências emocionais para o espectador, que ao longo dos demorados 152 minutos consegue passar por vários estádios, do riso aos nervos, da esperança à ansiedade. A narrativa para além de desajeitada, é tão intermitente que, apesar da representação fiel das emoções, sentimentos e partilhas daquilo que é a vida privada de um casal, acaba por ser explorada a um ponto mais documental do que ficcional, não isto sendo algo necessariamente mau, no entanto, revelando algum exagero na crime scene investigation. O desempenho de Sandra Hüller é tão eloquente e arrebatador que a actriz puxa o filme para si, fazendo com que o restante elenco, por vezes, se perca em cenas não tão corpulentas.
Rita Cadima de Oliveira
Refere-se de forma muito mais rica à “queda” num sentido figurativo do que à realidade física do evento. A imagem é a de um “drama de tribunal”, mas a anatomia ou retrato é aqui do casal – do amor e do conflito que os une. Um dos aspectos mais interessantes do filme será o facto de retratar, com justeza, a vida íntima de um casal como uma relação de inerente desequilíbrio e como algo frequentemente incompreensível ao observador externo. Anatomie é nisso um filme singularmente romântico, ocasionalmente de grande ternura, se bem que intrinsecamente trágico. Como refere Sandra, o final do julgamento será uma espécie de “não-vitória”, por não existir um final feliz possível. E também o filme não saberá encontrar uma verdadeira conclusão, apagando-se distraidamente em 10 minutos finais sem franca relevância.
Miguel Allen