Críticas a Alice Doesn’t Live Here Anymore, de Martin Scorsese

EquipaAbril 9, 2024

Estreado em 1974, Alice Doesn’t Live Here Anymore nasceu primeiramente da vontade de Ellen Burstyn, que, no contexto do Women’s Rights Movement, que se vivia nos EUA, quis fazer um filme que refletisse, nas palavras da própria “um ponto de vista feminino, mas de mulheres que eu reconhecesse (…) que estivessem a passar pelo mesmo que eu e as minhas amigas.” A Warner Bros., que renovara o seu contrato depois de The Exorcist, aceitou fazer um filme a partir do guião de Robert Getchell e pediu-lhe que escolhesse o realizador (outros tempos…). Depois de ver Mean Streets, Burstyn escolheu Martin Scorsese, reconhecendo-lhe a capacidade de acrescentar o toque de crueza que, no seu entender, faltava ao argumento. Assim, o ainda jovem realizador encabeçou o seu primeiro projeto de estúdio e o resto é História…

O filme voltou a ser exibido em Portugal, no âmbito do ciclo “Ir ao Cinema em 1974”, organizado pela Cinemateca Portuguesa, por ocasião da celebração dos 50 anos do 25 de abril. Quatro tribunos foram revisitá-lo e deixam-nos aqui as suas impressões.

 

Em muitos aspetos, Alice Doesn’t Live Here Anymore é uma anomalia no corpo de trabalho de Martin Scorsese. Além de trocar o submundo de Nova Iorque pelos honkytonks e motels do oeste americano, é (apenas a par de Boxcar Bertha) uma das suas raríssimas histórias centradas no protagonismo, vivências e pontos de vista de uma mulher. Os exercícios de estilo que pontuam habitualmente as sequências do cineasta (e que muito devem ao trabalho da editora Thelma Schoonmaker) não moram aqui, dando antes lugar a uma abordagem mais crua e humanizada. A poética da violência é dissolvida por um realismo social sincero que, não obstante, é carregado de humor. Toda esta singularidade, aliada à proximidade temporal com duas das mais puras destilações da essência de Scorsese – Mean Streets e Taxi Driver – fadou este filme a um quase esquecimento nas retrospetivas, listas e discussões da obra do mais reputado realizador americano da atualidade. Uma pena, uma vez que este road movie está carregado do sabor, energia e crueza de New Hollywood, sendo dessa vaga um excelente exemplar. Ellen Burstyn é extraordinária como a mulher que, à semelhança de Dorothy (de Wizard of Oz, referenciado no prólogo deste filme), se vê forçada a abandonar a pequenez da sua mundividência e a lançar-se numa aventura que, ainda que muito mais “material”, tem tanto de autodescoberta como a da sua fabulosa congénere. A liberdade dada aos restantes atores oferece-nos um leque de personagens ricas, tão divertidas quanto sofredoras, tão vulneráveis quanto perigosas. Empresta ao todo uma honestidade carnal e pulsante, que raramente encontramos fora do cinema americano dos anos 70. Será entre gargalhadas que testemunharemos a jornada de Alice, working class woman, pelos perigos de um mundo de homens e de precariedade laboral. Pela inclemente selva de poeira e asfalto que lhe desfaz sonhos e a obriga a encontrar novas formas de lutar contra o novo dia. Pela constante reinvenção de equilíbrios entre a relação com o filho e o que lhe resta de si própria. Afinal, she’s not in New Mexico anymore.

Gil Gonçalves

 

Alice Doesn’t Live Here Anymore não seria uma filme para ser trazido a público em 2024, mas foi em 1974. Sendo um dos primeiros trabalhos de Martin Scorsese, tem na sua acidez e despudor iniciais uma inocência algo crua e uma sonoridade peculiar. Esta chiadeira na qual se move, verdadeiro significante da ruralidade do oeste americano, faz deste filme uma peça sonora, que deposita todo um ruído estético na dramatização da vida barulhenta de uma mulher sacrificada a um mau marido, péssimo pai e pior companheiro. Há condescendência, paternalismo e ingenuidade que sobre e até uma certa banalização da violência física e psicológica, mas há também a superação e a concretização palpável daquilo a que aspiramos como humanos: a felicidade. Essa coisa que todos querem alcançar, mas que poucos sabem definir. Alice sabe. E é essa idealização que transporta consigo e com o seu o frágil filho, Tommy, abandonando o Novo México em busca de uma Califórnia mais composta socialmente e mais exequível em termos laborais. É neste mudança que Alice sonha construir uma nova vida como cantora. No entanto, as parcas finanças forçam-na a uma pausa a meio da viagem, no Arizona, onde mãe e filho se estabelecem temporariamente, e onde Alice consegue um emprego como empregada de mesa num restaurante. É nesta descida aos infernos da humilhação e do demérito que Scorsese nos mostra que a simplicidade e a realidade ainda são a melhor chave para entreter. Ou para se conectar com uma plateia que certamente se revê em algum deste realismo. É nas verdadeiras encruzilhadas da vida que rimos e choramos com as desventuras de Alice, ela que personifica a bravura e o arrojo perante a deselegância da vida, tanto quanto o gracejo e a jocosidade que utiliza nas infinitas adversidades que se somam. Esta Alice que não mais nos representa, mas que perpetua um legado ao qual não queremos voltar.

Rita Cadima de Oliveira

 

A única vez que Scorsese centrou uma história numa mulher foi no ano de 1974, nesta comédia negra sobre a tragédia familiar e um mundo masculino no qual Alice terá que se inserir para sozinha trazer a melhor vida para si e para o seu filho Tommy. Há algo verdadeiramente cativante na forma crua como Scorsese filma e edita o filme. O movimento de câmara desconcertante e imprevisível, com uma lente que por vezes flutua pelos espaços, filmando de cima, ou por outras rasteja agigantando as suas personagens (decerto metáfora para a visão do rebeldezito Tommy), atribui um realismo a este produto da Nova Hollywood que veríamos replicado em algumas das obras mais pungentes do realizador. A esse realismo adiciona-se uma iluminação visceral, com uma claridade exterior que por vezes faz arder os olhos, assim como o som lancinante, entre carros e pratos, que não permite ao espectador um momento de desatenção. Com todos estes ingredientes Alice Doesn’t Live Here Anymore resume o arquétipo do que seria este Arizona dos anos 70, ruralizado, empoeirado, onde se comem panquecas e se bebe american coffee. Nesse cenário inserimos um retrato incrível da mulher branca americana dessa década a que se aliam diálogos e atuações deliciosos, dignos de um Scorsese em pico de forma, que atribuem ao filme uma identidade verdadeiramente única na sua filmografia. Ellen Burstyn entrega uma interpretação de mão cheia que lhe valeu mesmo o Óscar de melhor actriz. Uma nota final para o pequeno e hilariante papel de Jodie Foster, aqui com 12 anos, a interpretar a amiga rebelde de Tommy, que quer com o seu amigo apanhar “pifos de vinho”.

David Bernardino

 

O melodrama americano e uma viagem pelo Sudoeste do país, sempre a caminho de um idílio, em Monterey, California. Scorsese evoca Douglas Sirk por Cassavetes, combinando-os com um certo slapstick burlesco (porque) filtrado pelo neo-realismo italiano. Motéis de cartão, piano bar, e americana. As paisagens áridas do Novo Mexico e Arizona ao volante de um Ford Country Squire, e ao som de Daniel ou de Jeepster. O retrato de uma vida que jamais se abre ao sonho, onde mesmo os céus vermelhos da infância parecem saídos de um filme de horror.

Alice (uma inesquecível Ellen Burstyn) será, com (Box Car) Bertha, a única outra protagonista feminina da filmografia de Scorsese, cuja obra, se não “instrumentaliza” as suas mulheres, como lhe é frequentemente apontado, incide insistentemente sobre personagens, valores e códigos tradicionalmente masculinos. Mas se o projecto lhe chegara às mãos por convite de Burstyn (e sugestão de Francis Ford Coppola), Alice Doesn’t Live Here Anymore, realizado entre os paradigmáticos Mean Streets e Taxi Driver, é uma quase-comédia romântica perfeitamente identificada no seu autor. Um dos seus filmes mais abertamente citacionais, mas com aquele jeito tosco, aquela edição brusca, e aquele deleite pela berraria e ruído, muito seus. E em boa verdade, quanto ao pastiche indelicado de Sirk : “it ain’t Peggy Lee“. Fassbinder poderá, algures, soltar uma boa risada.

Miguel Allen