Nos últimos anos, o filme biográfico tem ganho um substancial elã no panorama cinematográfico mundial. A reboque do legado de grandes figuras da música, da política, da ciência, das artes, ou do desporto, vários países e indústrias têm apostado na cativação de público pela exposição do “homem por detrás do mito” ou da “verdadeira história”. A publicidade aguça a vontade. Somos convidados a sentir a aura da impossível transformação física dos actores, fruto de próteses engenhosas, treinos desgastantes e toilettes complicadas. Desta vez foi o génio incompreendido, da outra tinha sido a mulher à frente do seu tempo. Isto não se passou. Eles ocultaram coisas importantes. Enfim, como condensar a vida e obra de alguém em duas horas? Pois bem, os bons filmes biográficos são os que tomam a rédea da liberdade (não confundir com licença artística) para comporem uma personagem singular, a do filme.
“Soares é Fixe” apresenta um Mário Soares sisudo na noite eleitoral das presidenciais de 1986, que, entre os intervalos dos resultados avançados pela televisão, relembra diferentes episódios marcantes da sua vida e da então jovem democracia portuguesa. Todavia, a sincopa oferecida é insincera. A reverência fílmica por Soares afasta qualquer hipótese de introspeção, e no que toca às memórias oferecidas nem chegaram a descongelar, quanto mais a vir para o prato. Recebemos o resultado de Coimbra, seguimos para a memória do 25 de Novembro de 1975, temos Leiria e vamos para o debate Soares vs. Cunhal, Porto, atenção ganhámos o Porto, siga para a agressão na Marinha Grande. Não necessariamente por esta ordem. A dada altura, só aguardamos pelo próximo bordão ou reconstituição de parangona. “Olhe que não, olhe que não”, “Portugal é do povo, não é de Moscovo”, “Soares é fixe”, “Pra frente Portugal”, “O povo unido jamais será vencido”, todas elas fazem uma participação especial no filme. O que leva à terrível questão, será que tudo o que sobrou da fundação da democracia portuguesa, dos diferentes ideais políticos que se defrontaram para uma sociedade mais justa, da construção de novas instituições… foram slogans e frases batidas? Estará para breve a transformação dos nomes sonantes da política e história portuguesas do pós-25 de Abril em meros alvos da toponímia? Afinal de contas, as brumas da memória têm por vezes um lado insidioso. Lembram-se do Almirante Reis, do General Morais Sarmento, ou do António Maria da Silva? Não faz mal, eles também não se recordam de quem foram.
Um dos poucos esboços de uma ideia encontra-se na figura de Salgado Zenha. Infelizmente, é rapidamente apagada. Do ponto de vista dramático, o duelo entre os dois socialistas é muito mais empolgante que o das eleições presidenciais. Vemo-los na fundação do partido, na cidade alemã de Bad Münstereifel, em que um Zenha (que na verdade não estava presente) contrafeito lá se rende a Soares para a formação de uma oposição não-comunista ao Estado Novo. Aquando da coligação dos socialistas com os democrata-cristãos, há novamente um confronto entre os dois, um ensaio da divergência que tanto podia oferecer ao filme. Tudo isto culminaria no combate entre os dois velhos amigos para saber quem seria o candidato da esquerda nas presidenciais de 1986, algo apenas mencionado na película, mas que não deixa de ter peso na ação. Caso para dizer que o tal Portugal dividido, que o filme tanto tempo perde a enunciar sem mostrar, à parte uns arrufos entre apoiantes, pouco importava perante a oportunidade que se oferecia.
Outro problema que atrapalha o andamento do filme é a já referida reverência a Soares e a todo o elenco de figuras que vão surgindo, de Freitas do Amaral a Ramalho Eanes. Conhecendo o rigor histórico com que esta e outras produções nacionais vão emprestando às muito fidedignas recriações de época, faltou o semear das falhas que os biografados revelavam. Uma consulta ao arquivo da RTP, mais precisamente aos debates destas eleições, bastava para entender as falácias e incongruências dos oradores. Ao vê-los, sobretudo tendo em conta a recente febre de debates que varreu Portugal, notamos o empregar de um vocabulário sofisticado, um inteligente manobrar de argumentos, e ainda tricas infantis e ataques infelizes. Freitas do Amaral e a antiga primeira-ministra Maria de Lourdes Pintassilgo embaraçam-se mutuamente numa discussão sem sentido de Marx e Popper. Soares, num assalto de “realpolitik” (aludida no filme), menoriza de forma falaciosa a figura e percurso de Zenha. Por sua vez, Zenha comete o erro de falar de um computador, qual HAL 9000, que vigiava o comportamento dos militantes do partido socialista. Em suma, a primeira década do Portugal democrático nunca foi um parlamentar entre Sénecas e Cíceros de gesso. Portanto, exigia-se um pouco mais de sentido crítico e menos fanfarra no retrato feito. Menos bordões, mais substância.
Saúda-se a iniciativa do filme, lamenta-se o resultado alcançado. Se nos concentrarmos no percurso de Soares entre o pré-Revolução dos Cravos e 1986, encontramos alguém que fez da política um jogo de dominó. Coligou-se com democrata-cristãos e satisfez sociais-democratas algumas vezes e outras nem tanto, sem deixar de ser adversário de ambos. O amigo de Frank Carlucci e solicitador de ajuda do FMI, que foi eleito presidente com os votos de comunistas. A peça certa no momento certo. O Soares jogador faltou à chamada do filme. E há ainda muito Soares: o pupilo de Agostinho da Silva, o universitário, o exilado, o negociador da descolonização, o líder do Bloco Central, ou ainda o protagonista de uma das mais embaraçosas campanhas eleitorais de sempre em 2006.
Finalmente, o amargo pela inconclusiva conciliação entre derrotados e vencedores. Uns festejam e dizem que nunca se esquecerão, outros efusivamente raivosos estão prontos a partir tudo. Faltou palco para o Soares concertador, não basta o “Presidente de todos os portugueses”, o bordão não basta. A caminho de mais um aniversário da Revolução de Abril, avizinham-se mais filmes sobre a época e provavelmente uma versão alargada em série de televisão de “Soares é Fixe”. Se tais iniciativas conseguirem empreender um plano de ideias e não se quedarem pela pose, tanto melhor, caso contrário, será apenas “porreiro, pá”.