O cinema de Kléber Mendonça Filho caracteriza-se pela utilização de referências cinéfilas e de filmes de género para comentar uma determinada problemática sociopolítica brasileira. Da gentrificação à especulação imobiliária, da (in)segurança ao medo do outro, dos anseios da classe média urbana à vivência no sertão. Retratos Fantasmas retoma os temas que lhe são caros, particularmente a transformação da sua cidade natal – Recife – sendo possivelmente, para o bem e para o mal, o seu filme mais pessoal.
O cineasta brasileiro conjuga uma série de formatos. Imagens de arquivo, os seus próprios filmes, filmes de outros realizadores passados no Recife, filmagens amadoras de diferentes períodos e filmagens atuais, criando um mosaico que nos vai desenhando o retrato histórico da cidade. O filme está dividido em 3 partes: o apartamento do realizador, os cinemas de rua e as igrejas evangélicas que os foram substituindo, sendo que desses espaços físicos emanam os vários fantasmas aludidos no título do filme. A mãe de Kléber Mendonça Filho, o cão do vizinho do lado e o senhor Alexandre, antigo projecionista de uma das salas de cinema.
Apesar dos méritos do filme e da forma relativamente certeira como o realizador articula o seu discurso e traça o panorama histórico de uma cidade progressivamente refém do neoliberalismo, valendo-se da nostalgia por uma determinada identidade perdida e extrapolando a sua experiência pessoal para o Recife como um todo (e que valeria para muitas das cidades do mundo), paira sobre Retratos Fantasmas uma brisa que já se fazia sentir em outros filmes de Kléber Mendonça Filho, agudizada pelo registo na primeira pessoa.
Esta brisa acaba por ser, nada mais nada menos, do que a forma do(s) filme(s), naturalmente indissociável do conteúdo. A forma corresponde, lato sensu, ao que se escolhe filmar, à maneira como se filma, à distância entre a câmara e o objeto filmado. São preocupações recorrentes na crítica de cinema, de Jacques Rivette (De L’Abjection) a Serge Daney (Le Travelling de Kapo), tão pertinentes para avaliar a distância justa entre a câmara e os campos de concentração, como qualquer outra realidade díspar da realidade de quem está atrás da câmara.
Quando se fala de distância justa importa mencionar um nome incontornável no panorama cinematográfico contemporâneo, o cineasta português Pedro Costa. Não é que Kléber Mendonça Filho resvale para qualquer tipo de miserabilismo sensacionalista mas, ao contrário de Costa, denota-se algum afastamento entre o próprio e a realidade que capta na câmara, que, neste filme, se torna evidente na cena final com o motorista da UBER, paradoxalmente revelatória e, eventualmente, confessional.
E a distância para o objeto filmado vale, neste caso, também para o próprio cineasta brasileiro, narrador omnisciente durante todo o filme, surgindo diversas vezes à frente da câmara. É verdade que estamos a falar de um filme na primeira pessoa, que segue claramente a experiência e visão do seu autor, mas, aquilo que poderia levar a uma aproximação do espectador ao seu ponto de vista, como se verifica, por exemplo, nos filmes de Jonas Mekas (As I Was Moving Ahead Occasionally I Saw Brief Glimpses of Beauty), resulta, em Retratos Fantasmas, em alguma frieza com laivos de autoindulgência e até altivez intelectual.
Retratos Fantasmas é um filme de espectros. O espectro do passado de Kléber Mendonça Filho que assombra o presente. O espectro da história do Recife que assombra a atualidade. O espectro dos cinemas de rua que assombram as igrejas evangélicas em que se converteram. O espectro da identidade de uma cidade que o capitalismo tornou assombrada. Mas, fundamentalmente, o espectro do autorismo que assombra a genuinidade de todos os fantasmas que se procuraram retratar.