Rebel Ridge, de Jeremy Saulnier: a vingança como instrumento social

Hugo DinisSetembro 24, 2024

Perto do clímax de Rebel Ridge, a personagem de Anna Sophia Robb, uma assistente legal no tribunal local que ajuda Aaron Pierre a derrubar um destacamento policial corrupto, diz que “this whole fuckin’ town couldn’t form a single spine between them”. O sentimento, pelo menos dito assim, parece aludir a uma vasta conspiração de podridão política e judicial em torno da defesa de meia dúzia de polícias. Mas Rebel Ridge, sempre de pé firme no travão, não é bem nem um thriller conspirativo com um desenlace metódico, nem um exercício de vingança contra a máquina.

Jeremy Saulnier evita aqui sempre o compromisso. Rebel Ridge é o seu segundo registo para a Netflix, depois do desapontante espiritualismo de Hold The Dark, fazendo regressar o antigo herói independente aos argumentos pela primeira vez desde Green Room. Acontece que, quase dez anos depois de um filme de uma banda punk atacada por skinheads durante um concerto, Saulnier agora apresenta-nos um baseado no conceito de civil forfeiture, uma espécie de expediente legal americano que permite às forças de segurança arrestar bens apenas sob suspeita criminal sem necessidade formal de acusação em tribunal.

Ainda que a coisa tenha o seu interesse, não nos remete propriamente para a tensão subtil e niilista de Blue Ruin ou para a energia nervosa de Green Room. Não sendo isso necessariamente um problema, a narrativa de Rebel Ridge parece permanentemente perdida entre um espaço de comentário social e político relevante, e a tal ausência de compromisso para conferir aos acontecimentos e às personagens a sua verdadeira personalidade. Disso é, de resto, exemplo a de Aaron Pierre, um ex-marine especialista em artes marciais com um primo na prisão, de carácter reservado e gélido, mas cuja narrativa pessoal se resume a isso.

Em entrevistas, Saulnier refere que havia visto Rebel Ridge como uma reimaginação moderna de First Blood (1982), de Kotcheff, que introduziu o público americano, no grande ecrã, a um John Rambo profundamente marcado pelas sequelas da Guerra do Vietname, o último sobrevivente da sua companhia, perseguido incessantemente pela polícia. Mas enquanto que Kotcheff enfatiza os traumas de Rambo para construir uma personagem verdadeiramente dividida, Saulnier apresenta um protagonista perdido nos meandros de uma conspiração de interesses e de bons rapazes locais, retirando-lhe profundidade e motivações verdadeiras.

O alvo da sua ira contida é o departamento policial de Don Johnson, um ponto cintilante em Rebel Ridge, que lhe confisca o dinheiro que iria para a libertação condicional do primo numa primeira cena que ilustra desde logo a natureza discricionária e sem escrúpulos da acção policial na vila. Mas enquanto que Saulnier constrói um antagonista acintoso com uma mão, logo faz por recuar e retirar a Pierre a iniciativa dos acontecimentos. A consequência é que os planos mais repetidos em Rebel Ridge, e são vários, são os de Pierre a desarmar polícias e a descarregar armas de fogo.

A desconstrução dos mitos e das tensões latentes na América profunda é, de resto, uma nota dominante na filmografia de Saulnier até à data. Mas enquanto que Green Room parecia aludir a uma violência dormente em vastas franjas da sociedade americana, antevendo um país prestes a ser tomado pela atracção trumpiana, Rebel Ridge faz do romantismo liberal, com a vitimização e a moderação, um ponto de ordem. O resultado é um filme balizado sempre entre a indignação justa e a relativização moral, no centro de uma conspiração deslindada pelos próprios conspiradores, num terceiro acto sem unhas nem dentes.

 

Hugo Dinis