The stupid [choices] tend to last forever (mas) it’s ok to go too far for the people you love. Embora citadas de cabeça, é difícil não pensarmos nestas duas deixas (completamente independentes entre si no filme) como se saíssem da boca do próprio Soderbergh, em jeito de reflexão sobre a sua extensa filmografia. Este ano, o realizador tem (mais) dois novos filmes e, como que em antecipação a Black Bag, filme de espiões a estrear em Março, chega-nos este Presence, curiosa incursão pelo filme de terror – rara na filmografia de Soderbergh – de orçamento reduzido (2M€ em comparação com os 60M€ de Black Bag).
Se Presence recorre aos tropos habituais de uma “casa assombrada”, e em tudo parece seguir os traços de um grande filme caseiro sobrenatural, ao jeito de The Ghost & Mrs. Muir (“O Fantasma Apaixonado“, Mankiewicz, 1947), o filme traz à discussão dois autores contemporâneos específicos, muito distintos entre si, e nisso tendo como referência projectos mais ou menos invulgares da obra recente de cada um deles.
A comparação será porventura algo superficial, e seguramente imprevista por Soderbergh, mas Presence relembra o recente Here (2024) de Robert Zemeckis, pela sua evocação global de uma espécie de “genius loci suburbano”. Apesar do forte dispositivo digital de um e a simplicidade tecnológica do outro, em ambos os filmes temos uma narrativa contada em plano sequência a partir do ponto de vista subjectivo de uma “não-personagem” (algo discutível em Presence) – um ponto fixo no caso de Zemeckis e em movimento contínuo no caso de Soderbergh, mas perfeitamente ancorado num espaço delimitado. Os dois filmes partilham ainda uma leitura temporalmente transversal da trama, onde o tempo todo e seus eventos de um determinado lugar acabam por confluir numa mesma imagem cinematográfica. Mas ainda que os dois filmes sejam tematicamente próximos, as suas ilustrações de americana são essencialmente muito distintas. Ambos terminam com dois planos (e respectivo movimento de câmara) muito semelhantes, é certo, mas o que em Zemeckis serve um paralelismo necessário entre dois filmes seus – o final de Here e a abertura de Forrest Gump (1994) – e, nesse mesmo gesto, os integra a ambos na tradição do melodrama americano, em Presence serve um propósito narrativo, procurando, pela metáfora (algo frágil…), uma conciliadora conclusão para a trama enclausurada do filme.

Presence não carrega, efectivamente, esse peso do melodrama sirkiano que assombrava em permanência a “xaropada” de Zemeckis. Na verdade, Soderbergh faz uma mais evidente incursão no campo de M. Night Shyamalan e, a partir desse modelo contemporâneo, lança-se numa exploração formal do espaço cénico, fundamentada em Hitchcock. Como em Rope (1948), o “teatro filmado” de Presence é um jogo que essencializa o acto de cinema, porque conduzido por uma exploração contínua, subjectiva e curiosa, do espaço filmado por um observador paradoxalmente ausente. Soderbergh apoia-se aqui numa inflexão narrativa que o separa do formalismo mais livre de Hitchcock, mas em ambos os casos, a câmara existe enquanto ponto de vista de uma testemunha da acção que não ocupa, no sentido lato do termo, o espaço.
Rope, de Alfred Hitchcock
A herança de Hitch em Presence é particularmente perceptível no tratamento dado aos espaços exteriores sobre os quais se abrem, visualmente, os espaços (necessariamente) interiores do filme. Como no “silêncio” final de Rope (lembremo-nos daquela janela aberta), um bruitage exterior, anónimo e constante, ecoa pelo filme de Soderbergh – uma vida em contínuo, que envolve o teatro de acções, sem (novamente) nele participar. Paradoxalmente, pela sua “neutralidade”, o exterior é, em ambos os casos, um espaço de abrigo – veja-se Chris (Chris Sullivan) ao telefone com o amigo advogado, ou a família inteira no alpendre após o evento no quarto de Tyler (Eddy Maday), ambos no filme de Soderbergh – como se a acção subvertesse o sentido das arquitecturas de cada filme.
Ainda sobre arquitecturas (ou “casas”), mas regressando a Shyamalan, Presence aborda o terreno de dois filmes essenciais do realizador. Existem aqui evidentes proximidades narrativas com The Sixth Sense (1999), mas Soderbergh parece interessar-se sobretudo por Signs (2002) e The Visit (2015). Como em Signs, vivemos aquela grande casa que, para todos os efeitos, parece existir isolada de um mundo exterior. A ameaça, já o sabemos, será simultaneamente, e quase por tradição, tanto externa como intrinsecamente interna, e seguiremos em ambos os casos, uma unidade familiar que trata um luto profundo, devendo, em paralelo, resolver um problema “incrível” que atinge a sua base de vida. Quanto a The Visit, Presence é, para todos os efeitos, Soderbergh em modo “Shyamalan circa-2015”. De facto, se não falamos aqui de found footage, em tempo do cinema digital parece impossível não traçar uma associação directa entre o trabalho de câmara (o faux subjectivo) dos dois filmes. E, claro, teremos também aqui um realizador “estabelecido” que, inusitadamente, se lança num projecto quase artesanal e de carácter relativamente experimental, ainda que protegido pela máquina dos estúdios americanos (mas com orçamento modesto).
Mas se falamos de casas, e família, e os seus fantasmas, digamo-lo abertamente (sem nisso frustar o espectador): Presence não é, em boa verdade, um filme de horror. Não “mete medo”, não “prega sustos”. É um filme onde se constrói um diálogo contínuo com a morte, um projecto que filma (tanto quanto é filmado por) um vazio. O retrato de um luto e da nossa necessária incompreensão perante o desaparecimento de alguém que amamos, perante esse mesmo vazio. No entanto, é de referir que, para o espectador que sempre acreditou (mesmo se involuntariamente) que existe algo nos espaços escuros de uma casa (e não existirá esse mesmo “acreditar” na essência do cinema?), trata-se de um filme carregado de uma certa “violência”. Soderbergh não envereda, felizmente, por golpes fáceis. Mas o peso psicológico daquele olhar que o filme nos oferece sobre um outro lado do espelho (pela “porta entreaberta”, nas palavras de Lisba) impõe, qual vertigem, a nossa necessária emoção – confusa, porque induzida pela crença irreflectida na conclusão que Soderbergh sugerira à história (desde o primeiro instante do filme).
Esse “segredo por detrás da porta”, um jogo formal que trata dessa “presença” constante, desse fantasma de (todo o) cinema – a câmara de filmar. Presence retomba num reflexo (ou reflexão) sobre o próprio trabalho de um filme. Muito cedo, aliás, o ininterrupto e fluído plano subjectivo se revela particularmente físico – com um olhar que mimetiza os olhos de uma pessoa, ou um percurso onde as escadas são sempre sinónimo de um movimento mais trapalhão, denunciando (e ainda bem) a artesanalidade do gesto. A partir desse mesmo registo e enquanto retrata aquela família, a dinâmica da unidade de quatro figuras com um elemento “sobrenatural” num mesmo espaço, o filme impõe, sentimentalmente, o propósito mais pessoal, necessariamente mais triste, da pretensa “presença” na trama.
Poderíamos, enfim, abordar com maior rigor a história do filme : um casal com dois filhos adolescentes – um rapaz, mais velho e campeão de natação, e uma rapariga (Chloé / Callina Liang), mais introvertida, marcada por um evento recente –, que se muda para uma casa nova nos subúrbios. Mas essa história é, claramente, o que menos nos importa. Entre os problemas legais da mãe (Lucy Liu) ou a apreensão e suporte moral do pai (que parece mesmo ter comido um ou dois burritos a mais), é o próprio Soderbergh que não se apega particularmente à novela do seu próprio filme – apenas em filmar os momentos, quiçá mais prosaicos, de uma família, em contínuo. Existe, claro, o retrato velado de uma certa perversidade americana adormecida. Mas, voltando a Rope e citando a sempre inteligente frase do vovô Godard, não é pelo motivo específico dos dois assassinos que, tantos anos depois, nos lembramos ainda desse filme, como não será aqui tanto questão de um propósito para cada personagem, mas sobretudo de um sentimento que a cada um deles nos transporta, dentro da acção global do filme.
Presence é o filme de um vulto inexistente, vazio e invísivel, que, na sua forma imaterial, deseja ocupar um espaço da cena. Um filme de silêncio metamorfoseado em grito lancinante. E, não sendo sem os seus faux pas – nomeadamente na construção da resolução final, onde o realizador complica enfim a gramática do filme – é com viva satisfação que seguimos esta experimentação quase juvenil de Soderbergh em torno de um género já tão mastigado. Será afinal pela sua inventividade e comprometimento que Presence se revela nessa evocação sentida do “acto” de fazer cinema. Porque, essencialmente, é como invocar um espírito.