Especial Porto/Post/Doc: Parte II

EquipaDezembro 4, 2024

Foi com prematura nostalgia que saímos do Batalha Centro de Cinema, após o último visionamento da 11ª edição do Porto/Post/Doc. Da qualidade da programação à irrepreensível organização – de sessões de cinema, conversas, debates e eventos adjacentes – e do sentido de abertura à comunidade à aposta em novos talentos, sentimos ter presenciado algo realmente especial no panorama dos festivais de cinema nacionais. Um lugar plural onde jornalistas, membros da indústria e público geral convivem em estreita proximidade, e onde a paixão pelo cinema não fecha os olhos às questões mais prementes do nosso tempo.

Nesta segunda parte do nosso artigo de cobertura, focamo-nos naquelas que, para nós, foram as secções mais fortes do festival portuense: a Competição Internacional e a Competição Transmission. Deixamos as nossas críticas a Pavements, Teaches of Peaches, Soundtrack to a Coup d’État, Bogancloch e The Return of the Projectionist. Partimos com a certeza de querer regressar, já no próximo ano, para o segundo tomo d’ “O Movimento dos Povos” (tema orientador do triénio 2024/2025/2026), intitulado “O Tempo de Uma Viagem”.

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Pavements de Alex Ross PerryCompetição Transmission

O propósito deste documentário fica claro logo nos momentos iniciais, quando os title cards descrevem os Pavement como a “A Mais Importante e Influente Banda de Todos os Tempos”, para referir a sua separação em 1999 e a sua reunião em 2022. Conhecendo minimamente o trabalho do grupo – as composições propositadamente dissonantes e anti-virtuosas, a atitude gozona em entrevistas, as letras dadaístas – percebemos rapidamente que este será um filme empenhado em fazer pouco do formato habitual deste tipo de produções – algo que saudamos – e em aproximar-se da identificação destes músicos mais pela “atitude” do que pelas peripécias históricas e olhar venerador de fãs incondicionais. O compromisso com a farsa é, pelo menos na premissa, admirável, gizando um universo paralelo em que o regresso d’ A Mais Importante e Influente Banda de Todos os Tempos será assinalado com um museu dedicado à sua história, um musical construído em torno de alguns dos seus êxitos, e ainda um biopic de prestígio, feito à medida de prémios como os Óscares.

Os desenvolvimentos destas linhas temporais distintas vão sendo justapostos, ora em split screens, ora em divertidos raccords que ligam eventos da vida real da banda, no presente ou no passado, ao que acontece nas produções das homenagens fictícias, de modo a “legitimá-las”. São particularmente conseguidos os sketchs do falso biopic onde um muito cómico Joe Keery (Steve, em Stranger Things) vai estudando Stephen Malkmus (vocalista, guitarrista e principal compositor da banda) para “entrar na personagem”. Tudo para apostar na atuação de uma vida, num filme cuja maior inspiração é Bohemian Rhapsody (2018), de Bryan Singer.

Porém, este cruzamento entre realidade e ficção torna-se rapidamente repetitivo e a estrutura pouco focada de Pavements vai trazendo com ela um fastio do qual o filme não conseguirá reerguer-se. O (sub)subplot da exposição é particularmente gritante. Sem real propósito, para além de riscar a lista de irritações dos envolvidos com uma forma particular de vaidade no meio artístico, vai-se arrastando em aparições obrigatórias que pouco que se ligam ao todo. Para além disso, a concessão constante à necessidade de ir mitigando a chalaça com segmentos reais reforça a grande traição deste projeto. Inevitavelmente estagnado no documentário relativamente convencional que tenta esconder que é, Pavements acaba por provar do próprio veneno, quando, mais para o fim, as tentativas de dar a conhecer melhor a banda e o seu impacto são um convite para desligar, não só por já virem tarde, mas sobretudo por serem um remate desapontante para o que o filme prometia.

Gil Gonçalves

 

Teaches of Peaches de Philipp Fussenegger, Judy Landkammer – Competição Transmission

É difícil de conceber que Peaches – ícone do punk rock feminista, rainha da subversão sonora, pioneira queer, semideusa da performance – não tenha tido um documentário até agora. Mas, na verdade, The Teaches of Peaches chega no momento perfeito – vinte anos depois de o álbum icónico com o mesmo nome ter atingido a cena musical do virar do século como uma bola de demolição. E Peaches continua a ser uma força da natureza.

Realizado por Judith Landkammer e Philipp Fussenegger, precisamente durante a digressão de aniversário de The Teaches of Peaches, o filme combina imagens de arquivo guardadas em VHS, preciosos vislumbres dos primeiros concertos ao vivo de Peaches, filmagens contemporâneas dos seus concertos, e imagens de bastidores que mergulham no caos do seu universo. Ver este documentário é uma experiência visceral — suada, crua e sem filtros. Quase como ir a um concerto.

O maior trunfo do documentário é a sua fusão de passado e presente num frenesim intemporal de criatividade. Há vinte anos, Peaches chocava e fascinava com a sua exploração destemida de género, sexualidade e da desordem da existência humana. Hoje, aos 56 anos, continua a dominar o palco e a provar que a autenticidade não envelhece — evolui, expande-se e brilha com mais força. Vê-la continuar a encarnar um ícone da revolução sexual é tão entusiasmante agora como na primeira vez que a conhecemos — talvez até mais, numa cultura que, aos poucos, começa a perceber o que Peaches tem proclamado desde sempre.

É verdade que o filme segue as regras de um documentário retrospectivo convencional: entrevistas, bastidores e muitos testemunhos reverentes de colegas. Mas a própria Peaches transforma essas convenções em confettis. Tudo o que ela toca torna-se uma extensão da sua arte, e The Teaches of Peaches não é exceção. É uma carta de amor a uma artista que recusa ser limitada, entregue com todo o caos que isso implica.

Landkammer e Fussenegger não reinventam o género, mas não precisam — Peaches fá-lo por eles. O documentário podia, facilmente (como tantos outros antes dele) cair no cliché de ser um mero repassar da carreira de uma artista. Mas, absorvendo a energia punk de Peaches, acaba por ser uma celebração da importância de nos mantermos disruptivos, barulhentos, criativos e absolutamente intransigentes num mundo desesperado por conformidade.

Carla Rodrigues

 

Soundtrack to a Coup d’État de Johan Grimonprez – Competição Transmission

Em 1960, o Congo torna-se independente da Bélgica, seguindo a vaga de descolonização que ganhara força em África desde meados da década anterior. Em plena Guerra Fria, EUA e URSS digladiam-se no tabuleiro mundial para estabelecerem áreas de influência neste continente. A administração de Eisenhower, com a força da CIA, empreende várias manobras de ingerência, em conivência com as antigas potências coloniais, de modo a garantir a manutenção de recursos importantes – nomeadamente o urânio para o armamento nuclear, que o Congo tinha em abundância. Entre a propaganda e a camuflagem destas operações, o jazz é instrumentalizado: músicos como Louis Armstrong e Dizzy Gillespie são enviados como emissários de paz a vários países africanos, para espalharem as maravilhas da “cultura americana” e convencerem as populações e governos a penderem para o lado ocidental da balança mundial. Enquanto isso, em casa, outros músicos como Max Roach e Abbey Lincoln usam a mesma música como forma de protesto contra a segregação e demais atropelos aos direitos humanos vividos pela comunidade afro-americana.

Em 2024, Johan Grimonprez propõe uma intrincada e errática tecelagem de todos estes temas com uma apaixonada homenagem ao jazz, que se insinua, por imagem e som, nas entrelinhas da montagem. Entre artistas apresentados como protagonistas, cruzamento ritmado de planos de atuação musical com imagens de arquivo de atuação política e uma estrutura algo solta – pontuada por citações de livros e entrevistas, nos hiper apelativos letterings de Hans Lettany – Soundtrack to Coup d’État arranca com promessas de grandeza. Contrariando a opinião dominante, sentimos que é precisamente nesta parte inicial que o documentário se aproxima mais de cumprir a proposta formal que almeja, conseguindo uma associação livre entre os assuntos tratados, em perfeita simbiose com as interpretações de jazz que vão invadindo a tela. Os segmentos entre Eisenhower e Khruschev são particularmente inspirados, bem como o tratamento dado à política de aculturação americana via emissários musicais. Infelizmente, esta inspiração vai perdendo fôlego, quer pela repetição, quer pelo inevitável foco num assunto central – no caso, a independência do Congo e a conspiração para assassinar Patrice Lumumba – à medida que o filme vai progredindo.

Passado o prelúdio, que muito bem estabelece os conflitos principais, o contexto macropolítico e os seus cruciais atores, começamos a entrar em variações do tema. O ritmo abranda, o jorro de informação começa a tornar-se mais intenso (aqueles bonitos letterings não param de aparecer, tantas citações!) e o recurso a três ou quatro narradores mais definidos turva a ligação entre acontecimentos, obrigando a montagem a vai-e-vens repetitivos entre assuntos, para que o espectador não perca o fio à meada. Quando mergulhamos mais fundo nos meandros da independência congolesa (foco de cerca de dois terços do filme), não só o didatismo começa a ser mais difícil de disfarçar, como a música se torna maioritariamente acessória, descarrilando numa espécie de medley de grandes êxitos do género. Passamos um longo período de aula de História em esteroides, cruzado com intriga política à moda de Oliver Stone, mais uns pozinhos de ativismo de internet, até voltarmos a ver a luz, já perto do final. Aí sim, o jazz volta a rebentar com um propósito, unindo a interpretação de Max Roach e Abbey Lincoln (We Insist Freedom Now Suite) a gravações da invasão do Conselho de Segurança das Nações Unidas, por parte de ativistas dos direitos civis, para protestar contra o homicídio politicamente motivado de Lumumba.

Independentemente dos solavancos qualitativos, este é um projeto de ambição recomendável. Roçando o brilhantismo nos seus melhores trechos, nunca chega a ser aborrecido nos seus piores. A longa duração e a vontade de detalhar a enormidade de assuntos tratados pode ser um empecilho ao foco e à estruturação narrativa, mas a apresentação visual é sempre cuidada e clara. A montagem, mesmo resvalando a nível estrutural, é inventiva quanto baste para gerar associações de ideias de forma elegante, entre planos. A música, independentemente dos pecados em que a sua utilização incorre, é um absoluto deleite. Saímos desta composição a desejar que a sua harmonia fosse mais conseguida, mas sem dúvida entusiasmados com a beleza de todas as suas melodias.

Gil Gonçalves

 

Bogancloch de Ben Rivers – Competição Internacional

Bogancloch é o segundo encontro de Ben Rivers, cineasta, com Jake Williams, protagonista, 13 anos depois de Two Years at Sea (2011), e a segunda longa-metragem que se move nos mesmos moldes: ausência de enredo, tensão, informação ou psicologia. O propósito parece ser apenas o de uma fuga de hora e meia para a realidade que Williams adotou. Um abrandamento, um pretexto para oferecer ao espectador o “desligamento” que urge, mas que se afigura praticamente impossível no panorama tecno-sócio-económico em que vivemos.

Williams é um eremita que habita em Bogancloch, um lugar remoto em Aberdeenshire, na orla de uma floresta. Abrigado numa espécie de antiga oficina ou fábrica, ocupa os dias com a satisfação de necessidades básicas – para as quais dispõe do indispensável – trabalhos manuais, jardinagem e passeios no mato. Com exceção de um gato que alimenta, e de dois encontros fugazes (um na sua realidade, outro na “civilização”), passa os dias em total – e aparentemente satisfeita – solidão. A proposta de Ben Rivers leva-nos, por isso, a uma situação paradoxal: por uma hora e meia somos co-habitantes de Williams – acordamos perto dele, dentro da caravana. Vemos, ao pormenor, todas as atividades a que se dedica, ouvimos as canções que canta, até o vemos tomar banho… Mas não lhe chegamos perto. Estamos, apesar de todo o detalhe com que os elementos são captados, sempre conscientes do nosso posicionamento do outro lado da lente.

Este distanciamento é enfatizado pelas opções estéticas de Rivers. Se, por um lado, o imaculado trabalho de som é profundamente imersivo, a experimentação imagética é mais irregular. A escolha de usar rolos de película de 16mm em diferentes estados de conservação (ou degradação) tanto nos transporta para o local (particularmente nos planos-pormenor de fumo e flora), como nos evidencia o exercício a que assistimos (alguns brancos explodidos, ruído demasiado intenso na imagem). E se esta camada sobre a realidade tem o condão de emular a divergente noção de tempo do eremita (para isto também contribui a montagem, que liga e condensa as estações do ano), mimetizando, a espaços, um filme do início do século XX, também adensa a noção de que estamos a assistir a tudo à fria distância de um vidro fosco.

Uma peculiar experiência de texturas sem tato, que está mais interessada na curiosidade do que na humanidade. Fascinada com as escolhas do seu protagonista, sem se fascinar particularmente com ele. Será bem recebido por quem valorizar sobretudo as provocações sensoriais e o experimentalismo visual; por quem tomar conforto num exercício de lentidão e escapismo elementar. Ou, enfim, por quem estiver a um pequeno empurrão de largar tudo e ir viver uma vida off the grid.

Gil Gonçalves

 

The Return of the Projectionist de Orkhan Aghazadeh – Competição Internacional

Le Retour du Projectionniste, de Orkhan Aghazadeh, é um daqueles raríssimos casos em que uma história é polida até à sua forma mais simples, deixando cada tema abrir-se aos nossos olhos, de forma elegante, sem que a isso corresponda um prejuízo da sua riqueza temática e filosófica. A fórmula para atingir este resultado passará, naturalmente, pelas qualidades técnicas do cineasta azeri, e da sua equipa, mas começa na linguagem dos mestres iranianos: aquela que dilui as linhas entre ficção e realidade para encontrar a poesia da vida quotidiana e das pessoas comuns; que encena para encontrar a verdade. Por outras palavras: este é um documentário, sim, no sentido em que filma pessoas reais, num lugar que existe mesmo, para contar uma história verdadeira, que escolhe dirigir segundo preceitos da ficção, isto é, de um guião e de uma mise-en-scène.

Nada disto é problemático – nem sequer alheio à história do documentário (os exemplos de encenação remontam aos primórdios do cinema, com os irmãos Lumière a encenarem a saída dos trabalhadores da sua fábrica, em Lyon, por exemplo) – quando o emprego de técnicas de ficção tem a verdade (alguma forma de verdade) por objetivo. E é isso que move Aghazadeh, quando edifica, em conjunto com os protagonistas e os restantes habitantes de uma aldeia do Azerbaijão, uma história filmada em belíssimos (e, sobretudo, altamente deliberados) planos, que não só potenciam o interesse do enredo, como também evidenciam uma profusão de realidades sobre aquelas pessoas. No caso dos protagonistas, o ponto em que estão nas suas vidas, o que os move, o que os alegra e entristece. No caso da aldeia, e dos restantes habitantes, a sua dinâmica comunitária, as suas normas e ideologias e o seu posicionamento no presente histórico mundial.

É neste quadro que nos são dados a conhecer Samid – um velho projecionista que deseja voltar a exibir filmes na sua remota aldeia – e Ayaz – um adolescente, aspirante a realizador, que se compromete a ajudá-lo nesta missão. E com esta apresentação das personagens e das suas motivações ficará claro que este é um filme de amor, porque um filme sobre cinema – a forma de arte que o sustenta estruturalmente, mas também o seu coração pulsante. O ar que respira, quando exibe, em vários planos, o seu dispositivo (as filmagens de Ayaz, os efeitos sonoros que grava com Samid, o funcionamento dos projetores e das dobragens artesanais) – e a luz que irradia, noutros tantos planos que nos mostram a comunhão, atividade e alegria humanas que gera.

Tudo, da busca de Samid pela única (e rara) lâmpada que pode ressuscitar o seu projetor analógico, aos preparativos para a exibição de um filme indiano, na assembleia da aldeia, é permeado pelo cinema. O analógico (o projetor e a sua mecânica interna) e o digital (as aplicações de que Ayaz se serve para fazer filmes de animação no seu telemóvel). O passado e o futuro, que se materializam no encontro de duas gerações diferentes de cinéfilos, mas também nos relatos nostálgicos da população. O envolvimento de todos os habitantes da aldeia na preparação da tela e da sala para o filme, que acaba por funcionar como espelho das “mecânicas sociais”, ou seja: o conservadorismo dos homens, que pedem um filme “altamente moral” e a censura de cenas vagamente eróticas, mas também a democrática e solidária forma como todos (homens e mulheres) são consultados e envolvidos no processo de ressurgimento desta forma de arte, na aldeia. O escapismo de Samid, da dor de uma perda familiar, o sonho de futuro de Ayaz, que está a finalizar um filme para enviar para um festival e, por fim, a alegria: os rostos de crianças iluminados pelo reflexo da tela, quando o filme é exibido.

Reservado para os últimos dias do Porto/Post/Doc, o brilho desta pequena pérola encandeou muito do que se viu não só nesta edição do festival, mas em todo o ano de 2024. Esperemos, por isso, que possa chegar a muitas salas portuguesas, nos próximos meses. Toda a gente merece conhecer os seus encantos.

Gil Gonçalves